José António Moreira, Visão on line,
Foi difícil obter uma resposta favorável da parte do conceituado professor americano ao convite que lhe havia sido endereçado para vir fazer uma palestra à Faculdade. Agora, vinha uma parte não menos difícil: fazer-lhe perceber que só poderíamos pagar as despesas de viagem se elas fossem suportadas por uma factura com o nome da Faculdade e o respectivo número de contribuinte.
Ofereceu-se-lhe a solução de comprarmos a viagem em Portugal. Depois de muita insistência lá condescendeu em prescindir da auto-marcação da viagem, enviando a reserva provisória que fizera na internet com menção do respectivo preço em dólares. Contactada agência de viagens credenciada, obteve-se o bilhete por um preço que, feita a conversão cambial, era mais caro apenas 60 Euros do que o que ele teria obtido.
Pensará o leitor que, tratando-se de dinheiro público, 60 Euros, ou outro montante por inferior que seja, não pode ser adjectivado com um "apenas" como se fez. Tem toda a razão. Penso o mesmo. Clarifico. O "apenas" pretendeu tão só reflectir o alívio por não ter sobrevindo diferença de custo mais elevada. No entanto, a sensação de impotência para obviar a esse "desperdiçar" de recursos foi de intensidade semelhante à sentida em outras situações congéneres em que estavam em causa montantes bem mais substanciais. Por exemplo, quando em deslocações de trabalho a possibilidade de usar voos "low cost" é colocada de lado por as companhias que as operam não emitirem facturas (formais) em nome da entidade patronal.
Não sei quanto pesam nos cofres do Estado - aos contribuintes! - estas diferenças de preço, ocasionadas pela rigidez com que as instituições se debatem na aquisição de bens e serviços. Mas, como diz o Povo, deve ser uma "conta calada". Que justifica que se procure o culpado por tal situação.
O funcionário que vai viajar é obrigado a seguir o que está regulamentado na aquisição de serviços. Se o não fizer, não será reembolsado do gasto incorrido. É culpado? Não. A Instituição a que pertence esse funcionário segue as directivas superiores que lhe são impostas e, em termos alegóricos, é o fiambre no meio da sanduíche: de um lado tem os auditores que escrupulosamente verificam se os ditames da Lei foram observados no que respeita à conformidade dos documentos; do outro, o Tribunal de Contas, que repete essa verificação e pode, mesmo, impor aos dirigentes da Instituição a reposição de verbas que não estejam devidamente justificadas em termos formais. É culpada? Não. O ministério da tutela, por sua vez, limita-se a impor o que está previsto na Lei quanto à efectivação e justificação de despesas, e que é transversal a todos os outros ministérios. É culpado? Não. O Governo, no seu conjunto, limita-se a aplicar o enquadramento legal que já vinha do passado, eventualmente retocado. Pode até assegurar que foi a União Europeia, por via da Directiva 2001/115/CE, de 20 de Dezembro, que impôs os elementos formais que uma factura actualmente deve conter (transcritos no art.º 35.º do CIVA, com a redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 256/2003, de 21/10/2003). Além disso, poderá acrescentar que tais medidas formais são um dos mecanismos de controlo para evitar comportamentos fraudulentos (Com que resultados!!! Ainda se lembram de há uns anos alguns deputados da República terem defraudado o erário público com a apresentação de facturas formalmente correctas que não correspondiam a efectivas viagens?) É o Governo culpado? Não. É a culpa da Assembleia da República, a entidade que, em última análise, é responsável pela elaboração da Lei? Não.
Parece que se está, portanto, perante mais um daqueles casos, tão recorrentes em Portugal, em que a culpa "morre solteira". Talvez não seja o caso, como se verá mais adiante.
Em muitos casos, a Lei portuguesa não se distingue sobremodo da dos seus parceiros comunitários. O caso em apreço, relativamente ao formalismo dos documentos, é um desses. O enquadramento legal não será muito diferente em Inglaterra, por exemplo. E, no entanto, Instituições inglesas congéneres dão mostras neste domínio - como em muitos outros - de uma flexibilidade enorme, que permite facilitar a vida de todos os envolvidos, com a correspondente poupança de recursos financeiros. A explicação para este aparente enigma reside numa diferença muito subtil, não formalmente enunciada, que respeita ao modo como cada cidadão é visto pelo Estado. De um modo muito singelo, pode referir-se que em Inglaterra cada cidadão é considerado inocente até prova em contrário; em Portugal é o oposto, com o cidadão a ser considerado (potencial) criminoso até prova em contrário.
Mas não seria justo deixar o Estado como o "mau da fita" pois, em questões de desconfiança relativamente aos outros e às instituições, os portugueses em geral tendem a adoptar comportamento semelhante. Existe no país como que uma desconfiança difusa, mas generalizada e muito enraizada, que mina todas as relações sociais. Tal desconfiança tornou-se uma característica da cultura vigente, algo que faz parte do sentir mais profundo de cada um. Um exemplo do dia-a-dia: o lacrar por parte da respectiva segurança dos sacos com que necessitamos de entrar nos super ou hipermercados. Nem nos questionamos sobre este tipo de comportamentos (que até já foi mais ostensivo), mas ele traduz a desconfiança existente quanto à honestidade do cliente, que se assume ser desonesto (potencial criminoso) até prova em contrário.
Para quem nunca viveu fora do país durante algum tempo esta afirmação da existência de uma desconfiança endémica que todos praticam pode ser difícil de aceitar, até porque um dos princípios fundamentais do nosso ordenamento jurídico é exactamente o considerar que todo o indivíduo é inocente até prova em contrário. E é difícil de aceitar porque, como referido, passou a fazer parte da cultura, entranhou-se no modo de ser e de actuar de cada cidadão e, através destes, no das organizações que são a base do Estado. Um outro exemplo: imagine que concorreu a um emprego na Função Pública. Liste a quantidade de documentos que vai ter de apresentar, na generalidade com um objectivo único: provar aquilo que uma mera declaração sob compromisso de honra poderia resolver (apresentação de um certificado com selo branco e tudo para provar que tem um curso; apresentação de certidão de nascimento, a acrescer ao bilhete de identidade, para provar que nasceu (?); etc.). Imagine agora que vive em Inglaterra, onde nem bilhete de identidade existe. Mesmo sendo um estrangeiro, para a maior parte das relações com o Estado uma simples declaração assinada sob compromisso de honra basta. E que boa sensação quando não nos barram a entrada nos supermercados para lacrarem as nossas sacas! Será que os ingleses são mais honestos do que os portugueses? Não me parece.
O que eu sei é que as relações sociais entre eles tendem a ter subjacente, em permanência, o pressuposto da confiança na contraparte, da sua honestidade, do aceitar, por princípio, que ela actua de boa fé. Esse sentimento, que se contrapõe à referida desconfiança endémica que vigora na sociedade portuguesa, permite criar flexibilidade nas relações a todos os níveis, muito em particular nas organizações. Mas há nesse edifício baseado na confiança um elemento central: a Justiça inglesa pune severamente e em tempo quem, comprovadamente, não se mostrar digno dessa confiança. Por exemplo, quem presta falsas declarações.
Aqui está o "calcanhar de Aquiles" português: a inexistência de um sistema de justiça que funcione em tempo e para todos sem distinção, facilitando a construção de relações baseadas na confiança. Num cartoon recente do Luis Afonso no jornal Público, a propósito do julgamento e condenação de Robert Madoff, o cliente informava o "barman" de que pouco mais de seis meses depois da descoberta da fraude financeira o culpado havia sido condenado a 150 anos de prisão. Resposta do "barman": se fosse em Portugal, o tribunal demoraria 150 anos a julgá-lo e aplicar-lhe-ia uma pena de 6 meses. Na "mouche". Capta na perfeição o sentir dos portugueses relativamente ao modo como funciona a Justiça.
Na ânsia de tornar o país melhor e mais dinâmico, os sucessivos governos afanam-se na produção de carradas industriais de leis e mais leis - veja-se o caso do programa SIMPLEX, por exemplo -, sem terem em consideração que o maior dos problemas - o PROBLEMA por excelência - reside na ausência de um efectivo e funcional sistema de justiça. Falta essa que afecta de forma avassaladora a vida em comunidade, mesmo em aspectos que aparentemente nada têm a ver com a Justiça, como é o caso da compra de uma viagem para um professor americano que brevemente nos vem visitar.