Carlos Pimenta, Visão on line,

1. Quase todas as semanas há casos que acalentam polémicas em torno do futebol. Árbitros, directores de clubes e órgãos de informação inflamam os sentimentos, incendeiam o clubismo, reduzem a racionalidade, encontram explicações para na mesa do café mostrarmos a nossa competência desportiva e concluirmos gloriosamente que a responsabilidade do que nos desagradou teve origem nos outros. Como país exportador de talentos por isso mesmo importador de outros quando os casos domésticos não são suficientes para nos distrair haverá sempre um evento externo capaz de ocupar ludicamente os nossos neurónios. Frequentemente os "maus da fita" repetem-se, funcionando não poucas vezes como manobras de diversão em relação às fraudes e aos crimes cometidos, em terrenos de menor visibilidade.
Assumindo o futebol tanto espaço da nossa atenção e tanto tempo de cidadania, não pode passar despercebido um estudo recente (de Julho) do FATF - Financial Action Task Force intitulado Branqueamento de Capitais no Sector do Futebol. Portugal foi um dos países que respondeu ao inquérito, mas só esporadicamente surge num quadro estatístico.
2. Sabemos que onde há conflitos de interesse há grande probabilidade de fraude. Sabemos que para detectar onde há fraudes basta seguirmos o curso do dinheiro. Sabemos que onde há grandes ajuntamentos populares e a ausência da análise serena das situações há condições propícias para aventureiros, defraudadores, corruptos e criminosos instalarem o seu acampamento e prestarem-se a todo o tipo de promiscuidades. Por isso mesmo todos desconfiávamos que o futebol, assim como outros desportos, poderia ser um sector propenso a tudo isso.
Contudo, o estudo que referimos traz-nos muitos elementos novos, embora ainda exploratório e essencialmente centrado no branqueamento de capitais. Veio sistematizar um conjunto de informações que mostram inequivocamente que o sector do futebol está particularmente sujeito ao risco de fraude, que há condições favoráveis à corrupção, que é vulnerável à infiltração da criminalidade organizada, que se insere em redes que englobam actividades de economia sombra e por onde passam muitos circuitos de branqueamento de capitais. Veio igualmente chamar a atenção que nem sempre os temas mais falados são o cerne das práticas criminosas e que frequentemente as fraudes e o branqueamento de capitais assumem grande complexidade.
Falamos em fraude, incluindo a corrupção. Falamos em criminalidade organizada. Falamos em branqueamento de capitais. Falamos em interpenetração com economia sombra. Todos sabemos o que isso significa, mas alguns exemplos, por poucos que sejam, podem facilitar a sua leitura.
Estamos perante situações de fraude quando as receitas de vendas de bilhetes são enganosamente contabilizadas, quando as transferências de jogadores se processam com verbas que não correspondem à realidade, quando a contabilidade dos clubes é manipulada para apresentação aos sócios e às entidades financiadoras, quando o "industrial da região" injecta capital no clube e gere este à margem das regras, favorecendo as suas empresas, ou quando se utiliza os clubes e os campos de futebol para publicidade sem cumprir as regras fiscais.
Estamos perante situações de corrupção quando "se paga a um jogador" de uma equipe para que o resultado surpresa permita apostadores manipuladores ganharem fortunas em apostas ilegais, quando se influencia intencionalmente o comportamento de árbitros para que a classificação esteja estruturada de determinada forma, quando se compram políticos ou gestores privados para a tomada de decisões que favoreçam um ou vários clubes, ou ainda quando as federações e os clubes servem como locais de conluio em negociações de grandes obras públicas à margem das regras.
Inserem-se em processos de prática de economia sombra quando há fuga ao fisco das entidades do futebol ou por parte de quem se aproveita dele, quando a transferência de jogadores está associada ao tráfico ilegal de seres humanos, levando até à obtenção de outras nacionalidades, quando as organizações desportivas são capas para o transporte ilegal de bens.
Há branqueamento de capitais quando o crime organizado internacional aproveita transferências internacionais de jogadores para fazer movimentações de capitais de uns países para os outros e lhes dá conotação legal, quando se adquire clubes ou se financia estes procurando "matar três coelhos de uma cajadada": fazer investimentos rentáveis; tornar legítimo o dinheiro obtido em operações ilegais; e ganharem notoriedade junto da opinião pública, protegendo-os da justiça. Há branqueamento de capitais quando vultuosos investimentos em grandes clubes ou investimentos diversos em clubes de segunda ordem são um trampolim para as máfias entrarem no sector empresarial de diversos países.
Eis apenas alguns exemplos que nos permitem entender, numa linguagem mais próxima da realidade que conhecemos, do que estamos a falar.
3. O que é que torna o futebol particularmente vulnerável a estas situações?
Em primeiro lugar há um elevado número de intervenientes formando uma rede de textura mal definida, frequentemente sem padrões claros, com cambiantes diversas de legalidade: jogadores (265 milhões no mundo, dos quais 38 milhões registados); clubes (301.000, com variegadas formas jurídicas); sociedades desportivas; agentes, registados ou não, dos jogadores e outros intermediários; investidores e gestores de clubes; "caçadores de talentos"; associações, federações ou ligas de clubes com funções e competências muito diversas. Eis o primeiro núcleo de intervenientes fundamentais do fenómeno desportivo.
Contudo muitos mais são os actores do fenómeno futebolístico, passando por eles avultadas verbas. São empresas diversas enquanto clientes, fornecedoras e financiadoras, sem nos esquecermos da grande importância económica actual da publicidade associada ao futebol; são órgãos de informação, com particular destaque para a televisão; são os governos locais e centrais; são as autoridades fiscais; são os promotores de apostas, legais ou ilegais, nacionais ou internacionais, e apostadores; são os mercados bolsistas e múltiplos intermediários financeiros; são os proprietários de equipamentos desportivos. São muitos os PEPs (pessoas expostas politicamente) que redemoinham nos circuitos do futebol.
Em segundo lugar trata-se de um mercado internacional, sobretudo a partir do caso Bosman em 1995, com baixas barreiras de entrada, de fácil penetração por pessoas individuais ou colectivas. Apesar de haver nichos de grande profissionalismo e adequada organização, nomeadamente na Europa, é um sector maioritariamente mal organizado, vulnerável, opaco. E, no entanto, já tem uma importância significativa do Produto Interno de vários países e na economia mundial.
Bastaria esta situação para o futebol ser terreno propício à infiltração do crime organizado internacional e canal de transferência ilícita de capitais, mas alguns factores adicionais ainda reforçam essa tendência: (1) a diversidade de estruturas legais e de práticas sociais nos diferentes países aumenta as facilidades de manobra; (2) as quantidades de dinheiro envolvidas nos negócios do futebol são estrondosamente elevadas, embora concentrando-se na ligas milionárias; (3) os montantes envolvidos são frequentemente irracionais e de rentabilidade futura imprevisível, o que inviabiliza a "racionalidade económica", os critérios de determinação do valor adequado e as medidas de controlo.
Acrescente-se, finalmente, que muitos clubes têm grandes carências financeiras pelo que se tornam presas fáceis para os aventureiros e os defraudadores e para a criminalidade organizada. Um mercado fácil de entrar, capaz de dar uma projecção pública e um apoio de adeptos que funcionam como obstáculos a uma eventual denúncia dos seus reais propósitos e sua condenação.
Em terceiro lugar, na sequência do que acabamos de afirmar, há um ambiente cultural favorável à fraude em geral e à corrupção em particular. Há aceitação social de certas práticas ilícitas ou eticamente reprováveis, desde que sejam "para bem do clube". As maiores irregularidades podem ser popularmente protegidas, beneficiando adicionalmente de promiscuidades públicas e privadas.
4. Dito isto é preciso precisar dois pontos:
(1) Afirmar categoricamente que a maioria dos intervenientes no fenómeno desportivo do futebol, directa ou indirectamente, fazem-no por amor ao desporto, por promoção pessoal honesta, por actividade empresarial dentro das regras da concorrência. Agem correctamente. As sociedades anónimas desportivas cotadas em bolsa estão sujeitas à regulação inerente a tais práticas e pautam-se pelo cumprimento das leis e dos princípios em vigor. A atenção que os órgãos de informação e o público dedicam ao futebol podem criar ilusões de óptica e de subavaliação dos perigos de fraude, mas também fazem com que os principais campeonatos e os principais clubes estejam sempre sob vigilância.
(2) Afirmar categoricamente que o potencial de fraude e criminalidade no futebol não é um fenómeno que interesse exclusivamente aos intervenientes no futebol ou aos adeptos desse desporto. Interessa a todos os cidadãos. O que está em causa não é apenas a actividade desportiva, mas toda a sociedade, as instituições democráticas. Os defraudadores, corruptos e criminosos utilizam o futebol para controlar a actividade económica e política de toda a sociedade.
5. Para terminar, algumas palavras de esperança, alicerçada em factos.
Sabemos que é possível combater muitas destas situações e promover a prevenção, aperfeiçoando-se as técnicas de detecção e combate ao crime no futebol, apesar de alguns processos serem bastante complexos e de os infractores continuarem a inventar novas formas de infiltração e fraude.
Sabemos que a Federação Internacional de Futebol, as federações regionais e nacionais, assim como a União Europeia e os governos têm tomado diversas decisões nesta matéria, embora ainda muito recentes e insuficientes.
Sabemos que é possível fazer uma lista de medidas a adoptar, desde um melhor conhecimento da situação à exigência de uma maior transparência financeira, desde uma mais eficaz regulação a uma mais estreita cooperação internacional. O documento referido aponta diversas dessas vias.
Contudo, não é dessa forma que gostaríamos de terminar estes breves apontamentos. Retomando uma afirmação frequente de Mia Couto "o adversário do nosso progresso está dentro de cada um de nós, mora na nossa atitude, vive no nosso pensamento. A tentação de culpar os outros em nada nos ajuda. Só avançamos se formos capazes de olhar para dentro e de encontrar em nós as causas dos nossos próprios desaires" (in E se Obama fosse africano? e outras interinvenções (pag. 138) desejaríamos lançar uma pergunta simples: o que é que cada um de nós pode fazer para combater a fraude ou o crime organizado no futebol? O que podemos fazer enquanto cidadãos de um país, em que o futebol é uma forte instituição nacional?
Apenas algumas sugestões:
a) Olhemos para os acontecimentos futebolísticos com serenidade. Vivamos com emoção as situações mas sem perder a racionalidade. Aproveitemos esta para, em todas as circunstâncias, utilizarmos a dúvida metódica: parece que tudo o que se passou foi honesto e gostaria de acreditar que sim, mas será mesmo verdade?
b) Tenhamos consciência que a fraude, o branqueamento de capitais e o crime organizado no futebol são uma realidade universal e não há qualquer razão, antes pelo contrário, para admitir que em Portugal a situação seja melhor. Uma situação que envolve muitos milhões de euros, complexa, raramente visível, excepcionalmente situada nos pontos de polémica.
c) Defendamos a total separação entre a política e o futebol. Talvez seja uma utopia mas o alargamento da democracia o exige, como referimos numa crónica anterior.
d) Percebamos que a renovação periódica dos dirigentes desportivos e a não eternização em cargos de controlo, regulação e decisão são uma condição favorável à transparência do fenómeno desportivo.
e) Olhemos com profunda desconfiança os "salvadores da pátria", capazes de todos os sacrifícios em nome do clube, do futebol ou do desporto.
f) Compreendamos que nenhum clubismo justifica aceitarmos a redução da cidadania, dos direitos e liberdades e da nossa democracia.
Percebermos tudo isto e actuarmos em conformidade.