Carlos Pimenta, Visão on line,

1. O Estado é uma forma da organização política e jurídica da sociedade.
A sociedade contém uma determinada correlação de forças que se exprime na hegemonia de uns em relação a outros, na existência de desigualdades económicas e sociais, na sistemática reprodução das relações sociais em que uns são quotidianamente vencidos e outros são vencedores, em que uns definem as estratégias do futuro e outros são peças da engrenagem que permite as suas concretizações. Uma tensão quase eterna, profundamente agravada pela fase da mundialização que temos vivido desde os anos 80 do século passado. Portugal tem sido, na última década, um significativo epicentro desta correlação de forças, atrasando-se em relação ao desenvolvimento médio da União Europeia, vendo aumentar as desigualdades sociais e a percentagem de população excluída de uma vida digna, esperando, tal como o Godot de Beckett, que o "saneamento financeiro" do Estado permita o que é sistematicamente negado. Reconstruindo. Como diz José Gil, o medo de existir.
O Estado é a organização política da sociedade. Reflecte, por isso mesmo e inevitavelmente, a correlação de forças existente na sociedade. As diferenças, conflitos e lutas políticas não são uma cópia das diferenças, conflitos e lutas sociais, mas não deixam de reflectir, à sua maneira, a correlação de forças social. A importância da organização económica nas sociedades contemporâneas faz com que o Estado seja sempre uma expressão política das desigualdades económicas.
2. A democracia é o Estado do povo em que cada indivíduo tem a capacidade de decidir do futuro colectivo. O Estado democrático diz ser algo diferente (igualdade de direitos) do que é (perpetuador das desigualdades). Por isso a democracia é, simultaneamente, uma utopia e um processo de vigilância e luta para garantir a máxima autonomia do político em relação ao económico. Vigilância contra o enfeudamento das instituições políticas aos interesses económicos dominantes. Luta pela isenção e seriedade das instituições políticas e dos políticos na construção de um futuro que contemple uma vida digna para todos os cidadãos.
Sob a bandeira utópica da independência do político em relação ao económico, da não subordinação das instituições políticas ao interesses económicos dominantes há que legislar e instituir valores e práticas que evitem os conflitos de interesse dos decisores e dos legisladores em relação aos seus apoiantes institucionais ou individuais, às oligarquias financeiras. Os conflitos de interesse potenciam as fraudes.
Um dos pilares importantes para atenuar esse conflito de interesses é a existência de transparência no financiamento dos partidos políticos e das campanhas eleitorais. Relevante pelas razões atrás invocadas, mas também porque aquele é uma fonte directa de corrupção e pode permitir "lavagem de dinheiro".
3. Sabemos que os problemas relacionados com o financiamento, formal ou informal, dos partidos e das campanhas eleitorais afectam todas as sociedades democráticas, por diversas vias: são os fundos geridos à margem das instituições, da contabilidade e da apresentação de conta; é a compra de favores a serem satisfeitos de imediato ou nos próximos anos; são as decisões e leis ditas "nacionais" que se tomam para servir alguns dos financiadores, ou as que não se tomam pelas mesmas razões; são os contratos privilegiados com algumas empresas e a concomitante marginalização de outras; é a infiltração do "dinheiro sujo" e das máfias nas instituições políticas. É, obviamente, a utilização dos instrumentos formais da democracia para enfraquecer esta.
Simultaneamente gera-se na sociedade uma atitude de "alheamento da política", de abstenção eleitoral, de enfraquecimento de participação nos partidos, criando condições para o aparecimento dos líderes sem ideais que extravasem o seu interesse pessoal, propensos à manipulação da opinião pública e ao reforço dos diversos aspectos nefastos anteriormente referidos.
Numa época de interdependência crescente dos cidadãos à escala mundial essa difusão da fraude por diversos espaços político-geográfico exige de todos nós uma resposta firme e eficaz. Contudo os portugueses devem estar bastante atentos a estas situações também por razões que são muito suas:
* A fraude política tende a ser mais tolerada pela opinião pública que noutros países, e até algumas formas daquela são quase consideradas como procedimentos "normais".
* A tradição é de grande impunidade criminal dos políticos a que se associam as manhas e artimanhas da legislação e a lenta operacionalidade dos tribunais.
* Há uma tendência, quiçá premeditada, para criar instituições controladoras e fiscalizadoras, que dão a ilusão mediática que são para evitar a fraude e outras operações ilícitas, mas que na realidade não têm capacidade efectiva de actuação.
* Os fundos informais (financiamento não assumido, logo não registado, pelo partidos políticos ou campanhas eleitorais) assumem montantes muito mais elevados que noutros países, mais elevados que os financiamentos contabilizados e declarados.
Façamos com que a tradição deixe de ser o que era!