José António Moreira, Visão on line,
"Se está escrito 'Tamanho único', é porque não serve a ninguém." Uma das 'leis' de Murphy
1. Um pouco de conversa amena, para descontrair, enquanto nos íamos acomodando no meu gabinete de trabalho. A visita é minha orientanda e vinha para discutir a Introdução do projecto de investigação que se propõe desenvolver no âmbito do seu doutoramento. À medida que os meus olhos percorriam as linhas do texto que me entregara, o resto do corpo ia-se contraindo, enquanto a tensão interior aumentava. As ideias que ela procurou colocar no papel não fluíam, cada dois parágrafos eram separados por um abismo, havia frases soltas que não desaguavam num fim. A minha tensão não era causada pelo inusitado da situação, pois, infelizmente, as dificuldades dos orientandos na expressão escrita tornou-se uma regra. Era, sim, pela antecipação do sacrifício que me espera ao longo dos próximos anos, em que boa parte do meu esforço de "orientação" irá ser direccionado para tornar o português da dissertação passível de ser lido pelo futuro júri das provas de doutoramento. Às vezes, em conversa com colegas que se debatem com o mesmo problema, costumo dizer que até nem me importava que os orientandos me contassem a "história errada", isto é, que não discutissem objectivamente o problema, desde que eu percebesse que existe uma "história" nas folhas que me entregam para ler. Não o conseguem fazer. No caso em análise, a reunião que devia ter durado uma hora prolongou-se por duas. E durante esse tempo, a partir do trabalho que me havia entregue, fui procurando explicar-lhe o "abc" da escrita de um texto. Sei, por experiência de outros casos similares, que dentro de duas semanas ela vai voltar à carga e o que me vai trazer não será muito diferente. Não se consegue que alguém que tem tantas dificuldades em escrever as consiga ultrapassar nesse período de tempo. Na despedida, antes de lhe desejar uma boa viagem de regresso a casa, ainda tive oportunidade de lhe perguntar como é que iam as coisas na escola de ensino superior onde lecciona.
2. Horário nobre, canal de TV pública, o entrevistado é presidente de uma das maiores empresas portuguesas. Às perguntas da jornalista, respondia com rapidez, mas com ideias simples e bem estruturadas. Tinha nascido em Moçambique, viera para Portugal com a descolonização, mas quase de imediato seguira para Inglaterra onde fizera todos os seus estudos e iniciara a carreira profissional. Voltara a Portugal para integrar a administração da dita empresa, que passara depois a presidir. É muçulmano e a sua esposa cristã. Instado a explicar como é que as diferenças religiosas eram acomodadas no seio da família, referiu que não causavam qualquer tipo de atrito, ajuntando, para mostrar que assim era, que os seus jovens filhos frequentavam um conceituado colégio privado pertença de uma ordem religiosa católica.
3. Foi minha aluna e mora relativamente perto, na mesma localidade. Encontramo-nos há dias, por acaso, e tivemos oportunidade de conversar um pouco. É funcionária pública, tem dois filhos, o mais velho irá ingressar no ensino básico no próximo ano-lectivo. Por tal motivo, disse-me, nos últimos meses tem dedicado algum do seu tempo a inteirar-se das alternativas disponíveis ao nível de colégios onde possa inscrever o filho. Apesar do esforço financeiro que isso acarretará para o seu orçamento familiar, a escola pública está fora de causa, pois não lhe oferece garantias de qualidade de ensino. E ajuntou, expressando-se em termos que reflectem a sua formação académica de base, que assumia esse esforço como um investimento que a longo prazo tenderia a proporcionar frutos. Despedimo-nos com a promessa mútua de nos mantermos em contacto.
4. Três encontros distintos, uma mesma ideia implícita: o sistema de ensino público não está a proporcionar uma educação de qualidade.
5. Tenho consciência de que sou mais um a "mandar uns bitaites" sobre a educação em Portugal. Um risco enorme, quando não sou perito em "ciências da educação", nem tão pouco domino o "eduquês". Sou docente numa universidade pública, isto é, membro desse sistema de ensino que agora analiso, e acredito que o mercado pode fornecer em cada momento indicação sobre a qualidade dos produtos, onde incluo a "educação escolar".
6. Como docente, apesar de ter o privilégio de leccionar numa Instituição que recebe em cada ano a nata dos alunos que escolheram a área da Economia e da Gestão, aquilo que sinto no meu dia-a-dia - e que afecta o meu próprio desempenho como professor - é que a respectiva qualidade académica à data da entrada na universidade é deficiente e tem vindo a degradar-se com o passar dos anos. Esta percepção, que muitos dos meus colegas partilharão, pode ser ilustrada, no que à minha área de ensino respeita, por referência a dois domínios principais: i) a dificuldade que têm em dominar a língua portuguesa, na sua forma escrita e, muitas vezes, até oral. Como quem não escreve bem não consegue transmitir o que sabe e, pior ainda, tende a não perceber correctamente o que lê, o aproveitamento dos alunos ressente-se de tal facto; ii) a dificuldade que demonstram em ultrapassar os "desafios" que lhes colocamos, mesmo quando estes são incipientes. Nota-se, a este nível, uma falta endémica de empenho pessoal, que os leva a desistirem perante a mínima dificuldade - "não consigo" é a resposta imediata -, e a acomodarem-se na mediania que lhes garante que é apenas uma questão de tempo até que o diploma de curso lhes vá parar às mãos. Num contexto como este, a tendência é para que o grau de exigência do ensino evolua no mesmo sentido desse empenho, pois o aluno mediano é o "farol" que guia o docente.
7. Acredito que mercados minimamente eficientes podem fornecer importante informação sobre a qualidade dos produtos e aquilo que vejo é sintomático do estado actual do ensino público pré-universitário em Portugal. Que ilação tirar sobre a qualidade do produto da empresa A, que em virtude de subsidiação estatal é disponibilizado "gratuitamente", mas que o consumidor pretere em favor do mesmo tipo de produto produzido pela empresa B, que é vendido a um preço considerável? Tem de se concluir que o produto de A não é de qualidade ou, com menor probabilidade, que essa qualidade não é percebida pelo consumidor. Nesta ilustração, substitua-se empresa A por "ensino público" e tem-se explicação para o facto de cada vez maior número de famílias tender, pelo menos no nível de ensino referido, a optar pelo sector privado. E, tanto quanto me apercebo, a preferência por este tipo de ensino só não é massiva porque, infelizmente, a família portuguesa de rendimento mediano, depois de paga a prestação mensal da casa e do carro, mal fica com dinheiro para comer. No entanto, já nem é preciso ir olhar aos administradores das empresas, pois famílias de recursos bem mais modestos, como é o caso da minha ex-aluna acima mencionado, estão crescentemente a fazer escolhas educativas que acreditam ser investimentos que irão frutificar no futuro através de mais e melhores oportunidades profissionais para os seus filhos. Mas, infelizmente, a fraca qualidade do "produto" não é apanágio único do ensino pré-universitário, embora seja a este nível, até pela repercussões que tem no seguinte, que os danos de formação tendem a ser mais gravosos. Basta, dentro de uma determinada área científica, olhar à denominada "empregabilidade" dos recém-diplomados pelas universidades e institutos, isto é, ao tempo que aqueles demoram em média até conseguirem um emprego no sector privado, para se ter a percepção de como o mercado, também neste domínio, tende a separar o "trigo do joio", dando informação sobre a qualidade reconhecida ao ensino ministrado por cada instituição.
8. A menção que faço ao "sector privado" no final do parágrafo anterior é deliberada. Pretende diferenciar o empregador privado do público (o Estado). Este tende a não ser eficiente na contratação de recursos humanos, por força da adopção de uma pretensa "igualdade objectiva" que acaba por se revelar uma notória fonte de injustiça. Com efeito, como se pode classificar o comportamento do Estado quando, num qualquer concurso público para admissão de pessoal, tributa com igual ponderação dois candidatos com média final de curso de, por exemplo, 15 valores, quando um vem de uma universidade exigente e com reconhecida boa qualidade de ensino e o outro vem de uma instituição com, digamos, "menos boa" qualidade? Em minha opinião, reside aqui, nesta (deliberada) incapacidade de contratar por parte do Estado, uma (entre outras igualmente ponderosas) das razões que ajudam a explicar a fraca qualidade do ensino público. A título mais ou menos anedótico, é corrente dizer-se que "ensina … quem não sabe fazer mais nada". No entanto, esta frase, que nos faz sorrir pelo caricato que traduz, espelha aquilo que ao longo de décadas veio acontecendo em Portugal. O sistema de ensino estava - hoje está menos, pelo decréscimo no número de alunos - aberto para acolher todos aqueles que, por uma ou outra razão, não encontravam emprego noutro lado. Bastava ter uma licenciatura, independentemente da respectiva qualidade. Pode argumentar-se que em termos sociais, ao proporcionar emprego a quem dele precisava, o papel desempenhado pelo sistema foi importante. Pois foi, mas a que custo para a qualidade do ensino, com que consequências para o país. Se há muitos professores que o são por vocação e produzem bom trabalho, outros há (demasiados) que, por falta dela, por deficiente formação de base, por incapacidade para actuar serena e ponderadamente em ambientes de tensão, são uma das causas do muito que de mau o sistema de ensino público hoje oferece. Pense-se, por exemplo, se alguém que tem deficiências ao nível do uso da língua-mãe pode ser o formador indicado para crianças e jovens que estão a familiarizar-se com o uso de tal ferramenta.
9. Mas outras razões existem. O sistema de ensino público pré-universitário foi, ao longo das últimas três décadas, o terreno por excelência de todas as experimentações, onde se acolheram todas as "teorias" educativas que, mais ou menos explicitamente, se propunham formar o "Homem novo", o cidadão do futuro de uma sociedade tendencialmente igualitária. Associadas vieram propostas "revolucionárias". Desde a ideia do que o estudo tem de ser "lúdico", passando pela recusa da avaliação dos alunos como meio de aferir o sistema e diferenciar quem trabalha (alunos e docentes) de quem o não faz, terminando na proibição de turmas e ou escolas de nível, que impusessem diferentes ritmos consoante as capacidades demonstradas pelos alunos. Tudo ajudou a moldar o sistema actual. Evitou-se "traumatizar" os meninos e meninas, mantendo-os num "mundo rosa" onde a recompensa é independente do esforço de cada um, e onde aquilo que se lhes exige é muito pouco. Isto explicará, penso, o carácter "amorfo" dos alunos que chegam à universidade, não treinados para trabalhar, incapazes de despender um mínimo de esforço na resolução de um "desafio". Se o objectivo de tais "teorias" e ideias era atingir a igualdade (dentro da escola), o sucesso é óbvio. Só é pena que se tenha nivelado por baixo, pela mediocridade. Quantas vidas académicas (e profissionais) que poderiam ter sido brilhantes foram sacrificadas em nome de tal objectivo …
10. A sociedade ficou, necessariamente, mais pobre e, no que parece ser um paradoxo, também mais desigual em termos de oportunidades. E o pior é que o aumento da desigualdade não resulta do (desejável) empenho e mérito pessoal de cada cidadão - em que os que mais se esforçassem na sua formação tenderiam a conseguir melhores oportunidades profissionais -, mas sobretudo do rendimento dos respectivos progenitores na altura de decidirem em que escola os matricular. As novas elites de hoje - políticas, intelectuais e profissionais - são, em grande parte, constituídas por aqueles que tiveram oportunidade de frequentar uma boa escola privada desde os seus mais tenros anos. E se a isto se juntou uma boa universidade estrangeira, então foi ouro sobre azul. Tal como na célebre fábula de George Orwell, "Animal Farm", há uns que são mais iguais do que outros.
11. Estou muito pessimista. A probabilidade de que este estado de coisas se inverta e a escola pública pré-universitária possa, num horizonte temporal razoável, dar uma efectiva contribuição para o desenvolvimento do país é muito reduzida. As "forças de bloqueio" são múltiplas e fortes, como temos visto pelas ondas de choque que têm abalado o sistema de ensino na sequência das insípidas reformas encetadas pelo Ministério da Educação. Ficou o aviso. Quem pretender afrontar os interesses instalados vai "comprar uma briga feia". Neste contexto, qual o incentivo dos políticos para encetarem reformas? Nenhum, até porque, a acreditar em informação que corre no domínio público, a generalidade deles tem (ou teve) os seus descendentes em escolas privadas. Juntam-se, neste aspecto, às restantes elites e, também, àqueles que, não podendo ser considerados como tal, mas dizendo-se acérrimos defensores do actual "status quo" na escola pública, na hora da verdade, quando têm que optar, acham que ela não serve para os seus.
12. Em termos alegóricos, a situação pode, pois, resumir-se do seguinte modo: o país é um barco navegando no mar alteroso da concorrência internacional, o sistema de ensino público um buraco no respectivo casco, e não há incentivo da parte das elites para o remendar. Em nome de um politicamente correcto "igualitarismo" - quem é que não subscreve a ideia de uma sociedade mais justa e equitativa? -, que se ancora no evitar deixar uns quantos para trás, arrisca-se o naufrágio do barco e de todos os que nele navegam. Há outras formas - tem de haver! - de tornar a sociedade mais justa sem ser por via do cercear das capacidades dos mais capazes. Continuar a insistir na falácia do tratamento indiferenciado dos alunos na escola pública como meio de mudar a sociedade faz lembrar a orquestra do Titanic, tocando enquanto o barco se afundava. Com uma diferença, claro. Tal insistência é, em si mesma, uma das causas do naufrágio.