António João Maia, Visão on line,
Em certo sentido podemos aceitar que os modelos de organização e funcionamento das Sociedades Humanas se posicionam algures num ponto intermédio de uma linha cujos extremos são, a um lado, formas de relacionamento interpessoal marcadas pelo egoísmo e unicamente pela defesa dos interesses pessoais de cada sujeito face aos que o rodeiam, e, a outro lado, por formas de relacionamento interpessoal altruístas, em que os sujeitos se inter-relacionam de uma forma pacífica, sempre animados por uma lógica de colocar acima de tudo o denominado bem comum.
Apesar de nunca se posicionarem exactamente nos extremos, é evidente que os modelos de organização social que se conhecem se aproximam mais de um ou de outro extremo, ou, o que é mais comum, é, ao longo do seu processo histórico-evolutivo, irem-se aproximando ora de um ora de outro. Se por vezes os contextos de relacionamento social parecem aproximar-se predominantemente do egoísmo, em que as pessoas quase deixam de se respeitar umas às outras, vivendo quase numa lógica de "salve-se quem puder", noutros momentos esses contextos parecem deixar adivinhar relações sociais baseadas numa sã e franca solidariedade social. Apesar desta descrição assim fria e simplista, é claro que nem todos os sujeitos de uma qualquer sociedade são egoístas ou altruístas em todas as situações das suas vidas. Há, isso sim, situações em que num mesmo intervalo de tempo, uma grande maioria das relações sociais estabelecidas pelos sujeitos parece aproximar-se mais de um extremo do que do outro.
Os factores que em regras comandam estas oscilações são, por um lado, os valores cultivados pela própria Sociedade e a forma como eles são propagados pelos sujeitos, nomeadamente como são incutidos nos novos membros (através dos denominados processos de socialização), e as sanções aplicadas aqueles cuja actuação contrarie as normas que a Sociedade estabelece com base em tais valores. Assim se num determinado intervalo de tempo e numa determinada Sociedade, os valores prevalecentes forem fortes, os sujeitos estiverem bem socializados (fortemente integrados na sociedade por acreditarem em tais valores) e os prevaricadores (aqueles que desrespeitam as normas - e os valores em que elas se baseiam) forem sancionados de forma considerada justa, o modelo de funcionamento desta Sociedade tenderá provavelmente a estar mais próximo do que se disse ser o altruísmo, ou seja mais em favor dos interesses comuns. Ao invés, se os valores forem fracos, por se encontrarem por exemplo em mutação (situação que, como refere E. Durkheim no seu modelo teórico de "anomia", deixa os sujeitos em situação de alguma angústia "anómica", por desconhecerem quais os padrões de actuação prevalecentes), ou se, independentemente de serem mais ou menos fortes, esses valores não estiverem convenientemente apreendidos e interiorizados pelos sujeitos (porque por exemplo o sistema de socialização tem falhado na sua função), ou ainda porque o sistema sancionatório dê mostras de também ele estar em falha (por não aplicar as respectivas sanções aos sujeitos que dão sinais de ter desrespeitado as normas), os sujeitos (nomeadamente aqueles que ainda acreditam nos valores e cumpram as normas) podem ser mais facilmente tentados a aproximar-se no pólo egoísta, ou seja a nortearem, de forma crescente, as suas relações sociais unicamente em função dos seus interesses pessoais, independentemente de estes concordarem ou serem contrários aos interesses colectivos.
Em nosso entender este parece ser, pelo menos em parte, um dos factores explicativos para a situação que presentemente parece subsistir em termos da ocorrência de situações de Fraude, sejam elas de que natureza forem. Quando, por exemplo, um cidadão tem a percepção de estar diante de uma franca possibilidade de não pagar a totalidade dos impostos que, de acordo com a taxa legal, deveria pagar, e, em função dessa percepção, decide não declarar todos os seus rendimentos, reduzindo assim o montante dos impostos a pagar e incrementando, através deste processo, a qualidade das suas Férias, esquecendo que, ao contrário, se efectuasse esse pagamento (como seria socialmente expectável), a Sociedade no seu todo beneficiaria por exemplo de obras de melhoria num troço de uma estrada municipal, ou de um parque infantil no jardim de um bairro, está a tomar a sua decisão tendo como base os seus interesses pessoais, que colocou acima dos interesses colectivos.
Neste contexto e sem colocar de parte que possamos estar efectivamente a atravessar um profundo processo de alteração de valores sociais (em resultado dessa autêntica revolução chamada globalização), ou que as frequentes convulsões vividas no seio do sistema de ensino possam reduzir a eficácia da sua função socializadora (a este aspecto podemos ainda acrescentar alguma turbulência no seio de uma das mais fortes instituições de uma qualquer sociedade, que é a família), parece que o sentimento de impunidade reinante (que vários estudos sociológicos nacionais e internacionais demonstram existir) pode ajudar a explicar os sinais crescentes de ocorrência de Fraudes, algumas delas de dimensão considerável. Em nosso entender e como já tivemos oportunidade de afirmar noutros textos anteriores, é importante que o sistema de justiça seja eficaz na aplicação de sanções às situações confirmadas de Fraude (bem assim como de outras infracções de natureza económica e financeira, como o caso flagrante e tão badalado do crime de Corrupção) e em complemento que essas sanções sejam ajustadamente divulgadas através da opinião pública, por forma a que o sentimento de impunidade se reduza e, através dessa redução, os futuros potenciais prevaricadores mais dificilmente se decidam pela prática de actos de natureza semelhante, sempre que a oportunidade para tal se lhes depare.
Finalizo com uma passagem de um filme de banda desenhada que ficou famoso há uns anos atrás e cujo título é "SHREK". Trata-se de um filme em torno da construção de uma relação de amizade entre um "Ogre", que vivia só num pântano, e um "Burro", que ali chegou verdadeiramente interessado em arranjar um amigo. A chegada deste "Burro" foi uma verdadeira dor de cabeça para o "Ogre" e para a solidão que este insistia em querer manter. De entre as primeiras palavras que o "Ogre" dirigiu ao "Burro" encontram-se as seguintes:
"Não Burro! Não há nós!"
"Há apenas Eu e o meu pântano!"
É tempo de definir estratégias, criar mecanismos e implementar métodos que evitem que a Sociedade se aproxime vertiginosamente de se transformar numa espécie de pântano onde sobressaem apenas os "Ogres", e onde os que respeitam as regras sintam ser cada vez mais "Burros".