António João Maia, Visão on line,
Uma das questões que insistentemente e ao longo dos últimos anos se têm suscitado ao nível da opinião pública prende-se com os índices de (in)eficácia do nosso sistema de Justiça, nomeadamente no campo da Justiça Penal, sabendo-se como se sabe da importância fulcral que um bom sistema de Justiça possui para toda a sociedade, nomeadamente em sistemas livres e democráticos, como o nosso. Arrisco mesmo a afirmar que a evolução de uma sociedade depende, pelo menos em parte, da confiança que os respectivos cidadãos depositem no sistema de Justiça que os serve.
Diversos inquéritos de opinião realizados nos últimos anos em Portugal têm vindo a concluir que a generalidade dos cidadãos não apresenta grande confiança no funcionamento da nossa Justiça. O próprio discurso social é demonstrativo dessa descrença: que é muito lenta, que tem um discurso demasiado erudito que a generalidade das pessoas não consegue entender, que por vezes não se compreendem os resultados que apresenta, que parece ter dois pesos e duas medidas, mostrando-se forte e implacável para com os fracos e indefesos e fraca e subjugada para com os poderosos, são alguns dos argumentos que diariamente temos oportunidade de ouvir um pouco por todo o lado.
Não sei se efectivamente a Justiça portuguesa é ou não eficaz, se é ou não célere, se produz ou não um discurso demasiado erudito, ou sequer se tem ou não dois pesos e duas medidas, nem estas linhas procuram chegar a alguma conclusão acerca destes aspectos. O que se pretende tão só com esta breve reflexão será procurar perceber aquela que parece ser uma das principais razões através da qual as pessoas constróem a percepção que possuem acerca da nossa Justiça.
Num estudo de carácter sociológico que recentemente concluí tive oportunidade de constatar que muito provavelmente a percepção social existente em muito se fica a dever à acção dos media. Não condeno a sua acção, longe de mim tal ideia! Sou até um defensor da sua função, desde que realizada de forma objectiva, rigorosa, isenta e em concordância com as regras dos respectivos códigos deontológicos. Não tenho qualquer dúvida de que os media possuem uma função muito importante nas sociedades modernas, qual é a de terem a faculdade de trazer para o debate público alguns problemas sociais que de outra forma jamais ou dificilmente teriam a oportunidade de ocupar um espaço na agenda social.
Será no contexto desta função de informar a sociedade que, sempre que se têm suscitado fumos que possam indiciar a ocorrência de crimes, nomeadamente de natureza económica e financeira - ou de colarinho branco, como também são conhecidos - e quando estejam envolvidos nomes de figuras destacadas da vida política ou da actividade económica, se têm gerado autênticos vendavais de notícias, algumas delas puramente especulativas - não respeitando portanto os princípios que apontei anteriormente -, mas que, no seu todo, muito contribuem para a edificação de uma certa perspectiva acerca dos factos sucedidos, deixando no ar mais ou menos implícita a ideia de tais crimes terem ocorrido e de terem sido praticados por tais figuras. Ocorrem os denominados "Julgamentos na Praça Pública", em que se edifica uma determinada versão dos factos sucedidos, cobrindo com um manto de suspeição os nomes das ditas figuras destacadas de vida política e económica. Estou certo que o resultado de todo o "ruído" produzido por tal vendaval acaba por tornar-se numa espécie de "alavanca" que empurra para a destruição o bom nome desses cidadãos, que, tal como todos nós e até "prova em contrário", a ele têm direito.
E aqui chegamos a um ponto muito importante da questão, que reside precisamente neste aspecto que denominamos de "prova em contrário". É que a prova que é efectivamente válida é a que é produzida pela Justiça, e, como sabemos, a produção desta prova é (muito) diferida no tempo. Como sabemos, nas situações em que a Justiça encontra elementos indiciadores da prática dos ilícitos, quando o julgamento dos respectivos suspeitos se inicia, já há muito que foram "condenados" no "Tribunal da Opinião Pública". Porém nos casos em que não foram encontrados indícios da prática de ilícitos, ou quando os elementos encontrados demonstram que não ocorreu ilícito algum, essa "condenação" do "Tribunal da Opinião Pública" sobre o bom nome dos envolvidos mantém-se. O manto de suspeição dificilmente será apagado, até porque as respectivas decisões judiciais não são divulgadas pelos media com a mesma força (e portanto com o mesmo efeito) com que haviam sido divulgadas as notícias aquando da fase inicial das investigações. A este propósito julgo oportuno mencionar alguns dos resultados que alcancei num estudo que recentemente efectuei sobre os conteúdos das notícias divulgadas pela principal imprensa escrita editada em Lisboa em torno da temática da Corrupção (MAIA, António (2008) "Corrupção: Realidade e Percepções - O Papel da Imprensa", Tese de Mestrado, Edição Impressa, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Lisboa). Em tal estudo foi possível constatar que 37,9% das notícias divulgadas acerca de práticas ocorridas em Portugal que consubstanciavam o crime de "corrupção", correspondiam a factos que se encontravam ao mesmo tempo em investigação judicial, enquanto apenas 18,6% correspondiam a situações com Acusação Judicial, 14,3% a situações já em Julgamento, 4,3% a Condenações e valor igual (4,3%) relativamente a casos que haviam sido Arquivados (ou seja em que não se demonstrou a prática de qualquer crime), havendo ainda 19,3% das notícias que não faziam qualquer referência à fase judicial em que se encontrava o respectivo procedimento criminal. Julgo que estes dados permitem demonstrar de forma clara as diferenças de potencial mediático que os casos merecem por parte dos media, quando são despoletados e quando os respectivos processos judiciais chegam a fases finais (Arquivamentos, Acusações e Condenações), podendo aferir-se do peso e da importância que desta forma podem adquirir os "Julgamentos na Praça Pública" e os mantos de suspeição que se edificam em torno dos suspeitos.
Por outro lado importa acrescentar a existência de um grande (enorme) desfasamento entre o tempo em que se realiza o "Julgamento na Praça Pública", que não será muito afastado relativamente ao momento em que sucederam os factos sob suspeição, e o tempo em que se procede ao Julgamento Judicial, nos casos em que a respectiva investigação criminal encontrou indícios que o justifiquem. Relativamente à criminalidade económica, a realidade tem-nos mostrado que, em regra, as Audiências de Julgamento têm lugar alguns (bons) anos após o surgimento das suspeitas (por vezes mais de uma década depois).
Relativamente a este aspecto importa salientar a perspectiva dos próprios profissionais que exercem a sua função no âmbito da actividade da Justiça, e com a qual concordamos plenamente, que afirmam que a Justiça tem os seus tempos e ritmos próprios, que resultam do estrito cumprimento da lei, e que, por consequência, pelo menos enquanto se mantiverem em vigor as regras actuais, muito provavelmente o cenário não sofrerá grandes alterações. Invocam mesmo, o que não será menos verdade, que muito do tempo despendido ao longo do procedimento criminal resulta de diligências solicitadas e recursos apresentados pelos próprios suspeitos no âmbito do seu natural direito de defesa. Tudo perfeitamente legitimado, portanto!
Porém será este desfasamento temporal existente entre os dois julgamentos (o da "Praça Pública", que tem o efeito de criar rótulos em termos da imagem social dos suspeitos, e o da Sala de Audiências, que é o efectivo, mas do qual pouco ou nada se sabe) que parece prejudicar em muito a imagem que os cidadãos possuem da Justiça. Em concordância com os resultados do estudo invocado anteriormente, não parece nada estranho que por vezes as pessoas comentem que "relativamente aos casos dos políticos a Justiça nada faça. Os jornais e as televisões fartam-se de falar de suspeições, ilegalidades e crimes por eles cometidos, e depois esses casos caem no esquecimento e a Justiça nada faz a tais Indivíduos". Ora isto, como sabemos, não é verdade. Todos os casos têm o seu fim. O problema é o tempo que decorre até lá chegar e a pouca (para não dizer nenhuma) importância mediática que possuem então.
No contexto social da actualidade, nomeadamente nos grandes centros urbanos, a vida decorre em ritmos cada vez mais elevados, que nos leva a termos a sensação de estarmos permanentemente atrasados, embora não saibamos exactamente em relação a quê, entre o agora e o agora, num processo que nos vai formatando gradualmente e de forma inconsciente para esta sensação de necessidade de termos sempre informação muito actual (tendencialmente em "tempo real") acerca de tudo o que acontece no mundo. É neste contexto de correria, que esporadicamente nos sentimos quase "obrigados" a parar, quando um jornal ou um canal de televisão nos atira de repente algures lá para trás, para momentos e factos que por vezes dificilmente conseguimos recordar, para nos revelar afinal o resultado de um ou outro caso judicial, num processo que em muito se assemelha a uma espécie de "Máquina do Tempo".
É tempo de a sociedade no seu todo, através dos responsáveis políticos, na qualidade de estrategas a quem ciclicamente confiamos a tarefa de definir as regras de funcionamento da nossa organização colectiva, conjuntamente com os funcionários da Justiça, por conhecerem melhor do que ninguém o funcionamento da máquina, encontrar alternativas de funcionamento mais modernas, mais concordantes com os "tempos presentes", por forma a que as decisões que produza sejam encontradas num tempo não muito desfasado da realidade dos factos. Por vezes, nomeadamente em situações de criminalidade económica, as testemunhas e os próprios suspeitos quando estão em plena audiência de julgamento nem se lembram muito bem dos factos sucedidos dado o intervalo de tempo entretanto decorrido.
Sem querermos estar aqui a fazer comparações, necessariamente sempre redutoras, até porque cada caso é um caso, nomeadamente no âmbito da Justiça, tomemos em consideração a título de exemplo o caso do violador Austríaco, que menos e um ano depois de ter sido detectado foi já julgado e condenado, e também o caso do Americano Madoff, que, da mesma forma, menos de um ano depois de detectado, está já a ser julgado pelos tribunais do respectivo país. São sinais de sistemas de Justiça bem mais céleres e certamente não menos justos do que o nosso, e que julgo todos, sem excepção, gostaríamos de sentir existir no sistema judicial Português. Sinais desta natureza certamente que aumentariam os índices de confiança de toda a população, e por essa razão tornar-se-iam úteis ferramentas para o aprofundamento da qualidade da nossa democracia.
Como bem afirmou o nosso anterior Presidente da República, Dr. Jorge Sampaio, no Supremo Tribunal de Justiça aquando da abertura do ano judicial de 2002, "justiça que não é célere, pronta e universal gera impunidade, insegurança e, por essa via, enfraquecimento da autoridade democrática do Estado".