José António Moreira, Visão on line,
1. Todos os cursos de iniciação à Economia reservam espaço para discutir a relação macroeconómica entre poupança e investimento. Sem poupança não há investimento, e na ausência deste as economias não crescem. Neste assunto, chega, sempre, a altura de discutir o denominado "paradoxo da poupança". É momento "alto" para o docente, que facilmente consegue o silêncio nas hostes que o escutam: se as famílias poupassem todo o rendimento disponível, não haveria consumo, as empresas deixariam de produzir e, por conseguinte, seria desnecessário haver investimento. Ou seja, a aparente contradição subjacente à expressão "a economia deve poupar" - o dito paradoxo - reside no facto de, no limite, demasiada poupança ser prejudicial ao crescimento económico.
2. "Deve existir confiança pessoal entre os membros de uma organização". Trata-se de uma afirmação que não merece, à primeira vista, qualquer tipo de reparo. Basta pensar no que seria a vida humana, o que seriam as relações entre as pessoas, se a confiança no outro estivesse ausente. Por exemplo, se um homem não tivesse confiança no seu barbeiro, certamente não conseguiria sentar-se na respectiva cadeira e, relaxadamente, deixar que ele lhe escanhoasse a face. Ou, sendo tesoureiro de uma empresa, a sua vida seria "complicada" se não tivesse um mínimo de confiança no(a) seu(sua) assistente e o(a) proibisse de gerir os fundos na sua ausência. Porém, também agora, tal afirmação tem subjacente um paradoxo. Sem confiança as organizações não funcionam, mas excesso de confiança pessoal entre os seus membros pode colocar em causa a sobrevivência das mesmas.
3. Já passaram cerca de 25 anos. Na agência do Banco B. de uma pequena cidade de província fora detectada uma situação anómala. Um cliente queixou-se à gerência que da sua conta desaparecera um depósito que alguns dias antes havia efectuado. Confrontado o justificativo em seu poder com os documentos contabilísticos do dia da operação, a gerência verificou que esta havia sido anulada internamente, no próprio dia em que fora registada. Comunicado o facto ao departamento de Inspecção, a auditoria a que se procedeu veio a permitir detectar uma fraude financeira que ascendia a cerca de 5 000 contos. O contexto em que ocorreu é fácil de descrever. Ao longo de um período de quase três anos, um funcionário-caixa, o sr. F., foi gradualmente subtraindo dinheiro, escondendo a situação através da anulação de operações de depósito. O esquema funcionava em pirâmide: as operações era anuladas e o produto dos depósitos revertia para o funcionário. Alguns dias mais tarde estes eram repostos, com valores recebidos de outros clientes cujos depósitos eram, por sua vez, anulados. E assim sucessivamente. Quando o caso foi despoletado o dito funcionário estava de férias e, tendo em consideração a motivação invocada pelo cliente para ter efectuado o depósito - a constituição de uma empresa -, não esperaria, certamente, que este tivesse necessidade de movimentar os fundos antes de passadas algumas semanas. Por conseguinte, a descoberta da situação naquele preciso momento foi obra do acaso.
4. Veio a apurar-se que, por detrás deste caso, que começara com o desvio inicial de 5 contos e chegara ao valor referido, estivera o não funcionamento do sistema de controlo interno. Com efeito, este impunha que a anulação de qualquer operação fosse autorizada pelo sub-gerente da agência, através de um cartão magnético de uso pessoal que deveria inserir no terminal do funcionário que necessitasse de efectuar um movimento de anulação. A excessiva confiança pessoal existente entre a equipa da agência, de modo particular entre a gerência e o restante pessoal, levava a que o dito sub-gerente, no início de cada dia de trabalho, colocasse no tampo da sua secretária o referido cartão, com autorização tácita para que quem dele necessitasse o usasse. Portanto, o controlo por via da participação de uma segunda pessoa em operações que implicavam "saída" de fundos pura e simplesmente deixou de existir. Questionado sobre as razões de tal procedimento, o sub-gerente justificou-se com o facto de "haver sempre muito trabalho para fazer e pouco tempo para atender ao pedido dos funcionários que necessitavam de usar o cartão" e, sobretudo, com o facto destes serem "gente de confiança, honesta e acima de qualquer suspeita".
5. Quando na pequena cidade se espalhou a notícia de que tinha havido uma fraude ("um desfalque", como se dizia) perpetrada pelo sr. F., foi um choque. Ele gozava de uma estima imensa entre os seus concidadãos e era considerado como sendo de uma honestidade imaculada e inquestionável. Tendo em conta a imagem pública do sr. F., e supondo que a dos restantes funcionários da agência não fosse diferente, uma pergunta se impõe: não seria tal imagem evidência suficiente para justificar o comportamento do sub-gerente na falta de controlo do seu cartão de anulação?
6. Não era. Sendo certo que a confiança se alicerça nas qualidades humanas que cada um percebe nos outros, não é possível esquecer três aspectos que aconselham prudência no nível de confiança depositado em relações pessoais de natureza profissional: i) mesmo tendo em consideração que ninguém é capaz de enganar todo o mundo durante todo o tempo, pode haver diferença entre as qualidades percebidas e aquelas que são intrínsecas ao sujeito; ii) há investigação que aponta no sentido de que o sujeito que pratica uma fraude, muitas vezes, fá-lo sem questionar a sua honestidade, pois admite no seu íntimo que os meios desviados são um mero empréstimo que rapidamente irá repor. Portanto, não é necessário que o perpetrador de uma fraude seja intrinsecamente desonesto para cometer tal acto; iii) qualidades pessoais como a honestidade, por exemplo, não são independentes do contexto em que decorre a vida do sujeito. Quando tal contexto muda, as qualidades pessoais intrínsecas do sujeito podem alterar-se de modo radical. No caso em apreço, como se veio a apurar, o sr. F. tinha iniciado pouco tempo antes da primeira retirada de fundos uma relação amorosa extra-conjugal que, supostamente, lhe impunha gastos mensais acrescidos. O contexto subjacente à sua vida mudara e com isso mudou também o seu comportamento profissional.
7. É sobretudo este aspecto contextual do comportamento humano que torna impossível modelizar, em abstracto, as determinantes genéricas da fraude. E é-o, particularmente, porque as alterações que ocorrem em tal contexto tendem, em geral, a não ser do conhecimento público até muito tarde, isto é, tal informação tende a permanecer no foro estritamente pessoal do sujeito. Não fosse assim e, conhecida no interior da organização tal alteração, haveria condições para que se tomassem medidas, ao nível do controlo interno, que pudessem servir de antídoto à potencial alteração comportamental daquele. Isto é, haveria condições para "colocar trancas na porta" … antes da casa roubada.
8. O sr. F. fugiu para o Brasil e foi condenado à revelia em tribunal. O sub-gerente foi compulsivamente reformado. Os restantes gerentes foram deslocados para outras agências do banco. Este, teve de ressarcir os seus clientes pelos danos financeiros que sofreram. Todos os envolvidos no tratamento deste caso, onde me incluía, constataram na prática o quão pernicioso pode ser para as organizações o excesso de confiança pessoal entre os seus membros. O paradoxo da confiança.