Carlos Pimenta, Visão on line,

1. A cimeira de Londres de 2 de Abril de 2009 assumiu posições que, se forem interpretadas unanimemente e aplicadas, podem conduzir a alterações muito significativas no funcionamento do sistema financeiro internacional.
Contrariamente a outras matérias em que apenas se ficou por formulações vagas (ex. "o crescimento da prosperidade, para ser sustentado tem de ser partilhado"), as medidas para a reconstrução do sistema financeiro e para uma regulamentação e controlo bastante diferentes do actual são detalhadas, quantificadas e precisas. Constam do comunicado principal e são objecto, sobretudo, do anexo "Declaração sobre o Reforço do Sistema Financeiro" .
Se as posições francesa e alemã podem ter influenciado essa mudança de posição, a razão fundamental dessa atitude encontra-se no reconhecimento generalizado de que a livre circulação dos capitais e a sua auto-reprodução nas bolsas de valores, totalmente desligada da produção de valor foram promotores da profunda crise de sobreprodução que actualmente vivemos. Assim como o foram, também, uma dinâmica económica empresarial e social subordinada ao curto prazo, a promoção de um Estado anoréctico economicamente, a defesa ou alheamento dessa situação pelos organismos internacionais.
Conhecida a relevância económica e política das offshores e o mediatismo que assumiu por muitas das fraudes estarem com elas relacionadas fizeram com que a possível posição do G20 em relação a esta matéria se transformasse no centro das atenções.
Se entendermos Centros Financeiros Offshores como regiões em que há
* uma redução da carga fiscal para os que aí investem ou fazem depósitos bancários;
* forte sigilo bancário e comercial, logo falta de transparência, e a recusa, mais ou menos velada, de prestação de informações a autoridades estrangeiras;
* a possibilidade e facilidade de criação de empresas fictícias;
a declaração do G20 combate-os com veemência. Sobretudo pelas exigências de transparência, de redução do sigilo bancário, de prestação de informações fidedignas nas investigações criminais. Pela exigência de registo de movimentos de capitais, pela defesa de uma regulação financeira mais eficaz.
São tomadas de posição positivas para quem defende um crescimento sistemático e duradoiro, uma mais equitativa distribuição do rendimento e da riqueza, uma mais forte cidadania democrática, um mais firme combate à fraude e a outras formas de crime, uma sociedade com relações éticas mais fortes e estruturadas.
Contudo não podemos estar eufóricos. Estamos apenas no início de uma dura, complicada e contraditória dinâmica social.
2. Frequentemente offshore é identificada com "paraíso fiscal". Corresponde à origem da sua existência e, como tal, os seus primórdios perdem-se na história das sociedades organizadas, remonta ao início da cobrança de impostos e da tentativa de escapar a eles. Neste sentido primitivo elas são a expressão dos conflitos entre países, aspecto que ainda hoje reflectem. Não é por acaso que até recentemente diversas conferências internacionais não se entenderam sobre o significado do que aparentemente era óbvio: o que é evasão fiscal. Não é por acaso que o Reino Unido mantém sob sua jurisdição, vários centros financeiros offshore, nomeadamente alguns de maior opacidade à escala mundial. Não é por acaso, nem por personalidade dos governantes, que o grito de alerta na recente conferência foi dada pela França e a Alemanha.
Associado a este sentido primeiro assistimos ao longo de décadas, quando se vivem períodos de crise, a uma sua condenação das offshores e a uma política de alguns países contra elas. As crises são, não só momentos de intensificação das contradições do sistema social, como momentos em que a falta de recursos financeiros pelos Estados assumem maior dramatismo: as receitas fiscais tendem a diminuir por redução da actividade económica, exactamente quando se exige mais políticas de intervenção económica. Há acesas discussões sobre o assunto nos anos 20, na crise de 1929/33. Retoma-se nos anos 80, discute-se hoje.
Contudo as offshores têm sido aquilo que o sistema social delas exige. Com o capitalismo à escala mundial os centros financeiros offshore tornam-se cada vez mais associados à fraude (temática já discutida nos anos 20) e ao branqueamento de capitais, vulgo lavagem de dinheiro.
Na década de 80 e 90 entrou-se numa nova fase de organização do capitalismo à escala mundial. A hegemonia política e ideológica do (neo)liberalismo, defendendo a livre circulação do comércio e dos movimentos de capitais e o definhamento económico dos Estados, assumia as offshores como paradigmas da liberdade e do poder da iniciativa privada. O aumento do capital financeiro desligado de qualquer processo produtivo até níveis nunca anteriormente atingidos transformava as offshores em centros nevrálgicos da especulação, da criação de produtos financeiros cada vez mais fictícios, da repartição encoberta da riqueza mundial, de aumento, produtivamente injustificado, dos preços de algumas matérias-primas e produtos alimentares. A economia "sombra" assume uma importância crescente em todos os países, expande-se exponencialmente nos territórios da antiga União Soviética, espalha-se como mancha de óleo na degenerescência das relações éticas, no aparente lucro fácil e na consolidação das máfias. As offshores reforçam a sua opacidade, não colaboração, e passam a estar estreitamente associadas à criminalidade económica, ao crime organizado à escala mundial. As redes informáticas e de telecomunicações à escala mundial potenciam todas estas tendências, transformando a fraude, o crime económico e o branqueamento de capitais em actividades florescentes, de fácil promoção e de difícil combate e punição.
Durante anos a correlação de forças era manifestamente favorável aos defensores dos sacrosantos altares do capital financeiro. Quando se propunha a existência de uma pequena taxa (taxa Tobin) sobre os movimentos de capitais, que obrigava mais ao registo das operações que a qualquer encargo desses fundos, os arautos da "liberdade" entoavam hossanas. Associou-se, quiçá um pouco artificialmente, o branqueamento de capitais ao terrorismo para criar condições para um seu combate mais eficaz, mas as mentalidades pouco foram influenciadas. Quando as moedas e a carteira têm mais actividade neuronal que o cérebro humano tudo se justifica e racionaliza em nome do enriquecimento.
A profunda crise que actualmente vivemos, em que os "erros" financeiros assumem total evidência, veio modificar radicalmente a apreciação económica, política e ideológica sobre os Centros Financeiros Offshore. A correlação de forças modificou-se, a percepção alterou-se e é essa a situação que vivemos hoje.
3. A reunião do G20 formulou alguns princípios importantes.
Estão criadas as condições, no âmbito do capitalismo, para mudar a forma de organização económica, social e política, que se viveu e se reproduziu no último quarto de século. Contudo não bastam declarações, são precisos actos e mudanças de política. A relevância de algumas potencias económicas mundiais na organização das offshores, o entrelaçamento criado entre o crime económico internacional e as estruturas económicas e políticas, os apoios estatais que nesta crise têm sido dados às instituições financeiras e aos capitalistas que promoveram tais desmandos, em detrimento do sector produtivo e das populações, a continuação dos discursos neoliberais nos fóruns internacionais e o enfraquecimento económicos dos Estados que as actuações de décadas promoveram mostram que ainda estamos longe do fim das offshores, ou do fim das suas actividades perniciosas para uma sociedade mais democrática, mais equitativa e mais justa.
Numa entrevista a esta mesma revista em Fevereiro de 2008 afirmava que as offshores são "a hipocrisia do sistema". Seria bom não ter de repetir essa afirmação daqui a alguns anos, chamem-se offshores ou qualquer outra coisa.