Nuno Moreira, Visão on line,

1. Ao longo dos anos a Auditoria tem vindo a desenvolver-se em função da realidade económica onde se insere, bem como em resposta a uma sociedade cada vez mais exigente e atenta; acréscimo de atenção, em especial, como resultado dos sucessivos e recentes escândalos financeiros que todos temos vindo a assistir, com repercussões nos mercados de capitais, na confiança dos seus investidores mas também, e sobretudo, na nossa sociedade.
Contudo, a evolução da Auditoria não tem conseguido acompanhar o acréscimo gradual de expectativas por parte da sociedade, existindo um gap entre o que a função de Auditoria proporciona e o que a sociedade dela exige - Expectation gap (para utilizar a terminologia de Harris, e Marxen).
A sociedade exige-lhe uma responsabilidade social para além de uma responsabilidade de carácter mais administrativo, tendo cada vez mais dificuldade em aceitar que a Auditoria não tem um papel primário no combate à fraude. Aliás, em termos de percepção do público em geral, é comum pensar-se que a Auditoria tem a capacidade e responsabilidade por detectar a fraude.
A Auditoria já teve, de facto, um papel primário na detecção de fraude, concretamente até ao início do século XX. Porém, a partir daí, esta responsabilidade primária foi-se esbatendo gradualmente. A Auditoria transferiu essa responsabilidade primária para os responsáveis pela Gestão das empresas, ficando, no que respeita à fraude, com um papel secundário. Posteriormente, durante a maior parte do séc. XX, e até hoje, chamou a si a responsabilidade primária, não pela detecção da fraude mas pela emissão de uma opinião sobre a informação e/ou relato financeiro gerado pelas empresas, no sentido de certificar se o mesmo é ou não credível e fidedigno no que respeita à realidade que pretende espelhar.
Este enfoque preferencial nas Demonstrações Financeiras e na avaliação da sua imagem "verdadeira e apropriada", em detrimento da detecção da fraude, foi justificado sobretudo pelas alterações sócio-económicas que vieram a concretizar-se no século passado, em especial o aumento da dimensão e complexidade das empresas que, nomeadamente, implicaram um acréscimo muito significativo do número de transacções efectuadas. A Auditoria "tradicional" que hoje conhecemos, por exemplo, através do trabalho que é desenvolvido em Portugal pelos Revisores Oficiais de Contas no seu papel de Auditores Externos, concluiu que, além de não poder ver tudo, o próprio planeamento e a metodologia, embora possa ser comum até certo ponto, é maioritariamente distinto quer se trate de assegurar a credibilidade do relato financeiro quer se trate de detectar a fraude. No entanto, à medida que se foi aproximando o final do século passado e, em especial, a partir dos já referidos escândalos financeiros que tiveram por cenário a fraude, a opção feita pela Auditoria em renunciar à responsabilidade primária pela sua detecção tem vindo a criar um aumento de pressão e criticismo por parte da sociedade e, em particular, por parte dos utilizadores da informação financeira.
Este facto não foi ignorado pela Auditoria, quer pela Auditoria Externa quer pela Auditoria Interna. Embora a Auditoria não tenha voltado a assumir a responsabilidade primária pela detecção da fraude, desde data mais recente, tem vindo a chamar a si um acréscimo de responsabilidade, o que tem vindo a ser reflectido nos seus normativos e regulamentação profissional. Relativamente à Auditoria Externa é de sublinhar nos EUA a Statement on Auditing Standards nº 99 e a nível da União Europeia a International Standards on Auditing nº 240. No que respeita à Auditoria Interna é também de salientar, a partir do ano de 1999, a actualização do seu conceito de forma a abranger também a Gestão do Risco e o Governance. É de reconhecer que, actualmente, apesar de a Auditoria não assumir a responsabilidade primária pela detecção da fraude, a probabilidade de a detectar, com este esforço normativo profissional mais recente, melhorou.
2. Mas será que faz sentido a sociedade continuar a insistir em pressionar e responsabilizar a Auditoria "tradicional" no que respeita à responsabilidade primária pela detecção da fraude?
A fraude, como é definida pela Association of Certified Fraud Examiners (ACFE) dos EUA, abrange três tipos: Apropriação de Activos, Corrupção e a Fraude cometida no Relato Financeiro. Por outro lado, para a sua adequada compreensão e, consequentemente, prevenção e detecção, requer conhecimentos para além da Contabilidade e Auditoria, nomeadamente, Informática, Psicologia, Criminologia, Investigação, etc. Ou seja, aos profissionais a quem for dado o papel de estar na linha da frente no combate à fraude e que assumam efectivamente esta responsabilidade, não parece exagerado pedir-lhes dedicação exclusiva, dado a abrangência de conhecimentos que este papel implica. A acumulação de outras tarefas e, em especial, outras orientações de trabalho que prejudiquem ou os afastem, ainda que temporariamente, do seu objectivo principal, não parece fazer sentido. Quanto melhor se conhece o fenómeno da fraude mais se tem a convicção que o seu combate exige dedicação exclusiva, planeamento e metodologia de trabalho próprios.
É de reconhecer o esforço que a Auditoria tem vindo a fazer ao longo dos anos no sentido ter sempre no seu horizonte o problema da fraude, primária ou secundariamente. No entanto, os escândalos financeiros continuam e o gap em relação às expectativas e percepção da sociedade subsiste.
Urge assim definir uma linha de orientação que, na actual realidade sócio-económica, se assuma como uma opção efectivamente eficaz.
Existem já bons exemplos a nível internacional e que podem ser caminhos possíveis como base a um processo posterior de harmonização mundial no combate à fraude.
É de referir a opção dos EUA em ter uma classe de profissionais especialistas autónoma no combate à fraude, função independente da função de Auditoria "tradicional". São eles os Certified Fraud Examiners (CFE) ou, em menor escala, os Certified Forensic Accountants (Cr.FA).
Cumpre também destacar uma outra opção, por parte do Canada, em criar, não uma função autónoma mas uma especialização por parte do Auditor Tradicional, Chartered Accountants - Investigative and Forensic Accounting (CA-IFA).
Estas duas opções já efectivas, quer a opção que privilegia uma nova e independente classe profissional quer a opção por dar uma especialização ao Auditor "tradicional", estão a desempenhar uma nova função suportada numa nova área do conhecimento, a Forensic Accounting, expressão que foi muito provavelmente usada pela primeira vez por Peloubet, em 1946.
Esta área do conhecimento agrega, ela própria, diversas áreas do conhecimento; além de criar desde logo uma intersecção entre a Contabilidade e Auditoria, por via de um trabalho de perícia de âmbito bastante alargado, exige conhecimentos em outras áreas bastante díspares que, no combate à fraude, conjuntamente, fazem sentido criando massa crítica e eficácia; são elas, nomeadamente, a Informática, a Psicologia, Criminologia e a Investigação Criminal.
3. Importa, por último, referir que o combate à fraude deve ser visto de duas ópticas: uma proactiva, de dissuasão e/ou prevenção, e uma reactiva, como reacção a uma suspeita ou a um facto já consumado. Quanto à 2ª óptica, a opção referida por desenvolver uma nova classe profissional, apoiada numa actividade profissional mais abrangente, a Forensic Accounting, independente ou por via de especialização, parece ser a mais acertada; a fraude requer uma abordagem específica, um planeamento e metodologia próprios, um conhecimento significativamente mais abrangente; a Forensic Accounting foi pensada de raiz para responder a isto mesmo.
Já no que respeita a uma óptica de dissuasão e/ou prevenção, a Auditoria "tradicional", fruto da evolução mais recente (e.g. Lei Sarbanes-Oxley) e o papel de Organismos internacionais de referência (e.g. COSO - Committee of Sponsoring Organizations of the Treadway Commission) tem capacidade para continuar a ter um papel importante, em especial na sua vertente de Auditoria Interna. Ou seja, nos países cuja realidade permita seguir de perto e adoptar as referências internacionais mais actuais e adequadas no domínio da Auditoria, bem como, nos países em que o número de empresas por ela abrangidas (interna ou externa) seja representativo do universo empresarial, a Auditoria poderá ter um papel proactivo importante no combate à fraude. Caso contrário, não restará alternativa senão dar à Forensic Accounting, de forma integral, o papel de vir a assumir futuramente e de forma efectiva as duas ópticas no combate à fraude.
Contudo, temos de estar conscientes que, a Forensic Accounting para se afirmar como nova área do conhecimento, sobretudo a nível europeu e à semelhança do que acontece nos EUA, ainda terá um significativo caminho a percorrer; desde a sua integração como disciplina nos próprios sistemas de ensino até ao seu reconhecimento oficial, regulamentação e certificação profissional.