Carlos Pimenta, Visão on line,
Protágoras da Silva acordou bem disposto. O sol enchia o quarto, a companheira espreguiçava-se sonolentamente, a alma transbordava de benevolência. Vestiu o fato de treino, fez a sua corrida matinal, deliciou-se com o pequeno-almoço, despediu-se com um beijo cheio de amor e dirigiu-se para o carro.
Faltava poucos dias para o Governo terminar funções e o futuro era difícil de prever. Como diz o ditado mais vale um pássaro na mão do que dois a voar. Ainda tinha muitos assuntos a tratar. Não há como o dever cumprido, uma família feliz e os amigos agradecidos. Essa paz confiança no futuro. O dinheiro ajuda à felicidade, por vezes até a compra, mas não é tudo.
Recordou-se do telefonema da irmã. Nas últimas férias, em ilhas das Caraíbas, ela tinha conhecido um estrangeiro, homem bem-parecido, empreendedor e apaixonado por Portugal. Tinha manifestado interesse em investir por aqui, mas nas auscultações do ambiente ao empreendimento tinha encontrado algumas dificuldades. O advogado e o intermediário, de expedientes e contactos vários, contratados não tinham sido capazes de resolvê-las. Ela sugeriu-lhe a possibilidade do irmão o ajudar. De início o seu amigo de ocasião resistiu, estava de férias, foi um falar por falar, mas perante tanta insistência, entre dois refrescos de rum, acabou por aceitar.
Protágoras não tinha dado muita atenção ao assunto, mas a insistência da irmã, a dimensão do investimentos, traduzível perante os meios de comunicação na criação de centenas de postos de trabalho, a boa disposição daquele dia solarengo e a aproximação da mudança do executivo, fê-lo levar a sério a solicitação daquela sua irmã, de idade próxima e de tantas cumplicidades infantis. Sabia que as dificuldades do investidor não eram apenas emperros burocráticos, antipatias de algum funcionário ou areias na engrenagem exigindo tratamento financeiro. A sua superação exigia mais do que boa vontade. Impunha algumas manipulações documentais, certas reinterpretações e reconstruções legais e, sobretudo, conhecimentos e poderes.
Tanto trabalho só para satisfazer os caprichos da irmã talvez fosse de mais, mas os amigos e a família são para as ocasiões. Quando universidades prestigiadas, como a Sorbonne, organizam conferências sobre o "jeitinho" português para o "desenrascanço", orgulhosamente exportado durante a colonização, que mal há numa pequena aplicação de tão glorificadas capacidades? É quase um ponto de honra.
O cronista não sabe quais as funções exercidas por Protágoras da Silva no Governo. Apenas se sabe que não era continuo, escrivão ou similar. Não se sabe que instrumentos foram desencadeados, mas não há qualquer dúvida que as dificuldades do investimento foram superadas e o empreendimento realizado. Os postos de trabalho foram anunciados. Os lucros, as rendas, as luvas e outros rendimentos concomitantes, não. Garantem alguns que não houve qualquer pagamento das horas extraordinárias de Protágoras. Se a presunção da inocência é um princípio fundamental e o amor à família é um pilar da nossa sociedade, não se tem razões para duvidar. Admitimos que nenhuma lei foi desrespeitada.
Não houve crime, juridicamente, mas houve fraude.
Sem informação pública, contrariando os procedimentos correspondentes à realidade até aí existente, contornando ou alterando leis, aquele investidor que foi passar as férias às Caraíbas conseguiu o que outros desejavam mas não puderam fazer. A "livre concorrência" foi maltratada. Houve logro. Vários que ambicionavam o mesmo negócio ou espaço foram logrados. A promiscuidade do económico e do político tem destes empecilhos.
Houve intencionalidade. Uma bela intencionalidade: satisfazer uma solicitação da irmã. Esteticamente louvável, eticamente reprovável.
Houve danos para todos os pretendiam fazer investimentos similares e não fizeram porque não conheciam nem a irmã, nem a prima em terceiro grau de um dos Protágoras lusitanos de brandos costumes. Houve danos para os concorrentes da empresa do nosso investidor. Houve dados para todos os cidadãos que foram prejudicados em termos espaciais, ambientais, ou outros que tais, com o investimento. Houve vantagens para aquele, e não outro, investidor. Quiçá para a mana do Protágoras, que já tem um passeio de iate marcado no próximo verão.
Houve violação de alguns princípios éticos, mas quem se lembra da ética quando esta só dá prejuízos?