Nuno Moreira, Visão on line,
Todos os meses o SNS é lesado em 15,2 milhões de euros.
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Estão sob investigação 245 casos de fraude no Sistema Nacional de Saúde (SNS), os quais lesaram o Estado em 229 milhões de euros. O mesmo será dizer que todos os meses o SNS é lesado em 15,2 milhões de euros!
Os casos detetados pelas entidades do Ministério da Saúde (IGAS e Infarmed), Polícia Judiciária e Ministério Público envolvem médicos, utentes, farmácias e armazenistas. Até à data foram detidas 52 pessoas, constituídos 253 arguidos e 129 casos acabaram nas mãos da PJ. Os dados constam do relatório do grupo de trabalho de combate à fraude na área dos medicamentos e meios complementares de diagnóstico e terapêutica (MCDT), que faz o balanço dos casos suspeitos desde Setembro de 2012 até ao final de 2013.
Este relatório foi entregue ao Ministro da Saúde depois de revisto, a 17 de Junho deste ano, e permite concluir que este tipo de fraudes “de grande dimensão” é praticado por todo o país, envolvendo grupos organizados e várias classes profissionais.
Devidamente alinhados com o ADN presente habitualmente no fenómeno da fraude e corrupção, não falta criatividade nos esquemas detetados. Falsos médicos, desvios de fundos, aquisições fraudulentas de equipamentos em unidades de saúde, apropriação para fins ilícitos das bases de dados de nomes de utentes e de prescritores, fazem parte da lista de expedientes das fraudes detectadas. Destaca-se ainda que foram identificadas novas áreas de risco: empreitadas de obras públicas na saúde, cuidados continuados, equipamentos não utilizados, bem como deficiente ou inexistência de imputação de custos de dispositivos médicos e medicamentos às companhias de seguros, a que se junta a não cobrança de taxas moderadoras.
Receia-se ainda que os esquemas já detetados em apenas 15 meses sejam apenas a ponta do icebergue! Já foi anunciado pelo ministério que um dos próximos passos no combate à fraude passará pelo reforço do controlo nos hospitais do setor empresarial do Estado. Algumas medidas já foram tomadas nesta área, principalmente ao nível da fiscalização interna nos hospitais.
A vertente da deteção e subsequente investigação é, naturalmente, importante mas será mais importante ainda a via da prevenção, a qual não se tem prestado a devida atenção.
A deteção e, sempre que aplicável, a investigação deve ser o fim de linha de um combate a um fenómeno multifacetado, o qual deve necessariamente começar na prevenção. Não funcionando por qualquer motivo a prevenção, a desejável e subsequente deteção devem funcionar como uma aprendizagem a integrar e reforçar o 1º filtro (prevenção) do combate à fraude e corrupção, tornando-o progressivamente e sistematicamente mais robusto. Em termos ideais, a função do filtro da deteção deveria ser gradualmente menor, à medida que o 1º filtro da prevenção fosse cada vez mais eficaz.
Existe já enquadramento legal, modelos de boas práticas internacionais (frameworks), alguns instrumentos interessantes e recursos (humanos) afetos a alguns serviços específicos que, localmente, nas unidades de saúde, já podiam ter operacionalizado efetivamente um sistema eficaz de prevenção da fraude e corrupção.
O risco de fraude e corrupção tem inequivocamente uma gestão atípica mas não será por este motivo que deve deixar de estar integrado numa gestão de risco plena e abrangente por parte de qualquer organização. E, no âmbito de uma gestão de risco de acordo com as melhores práticas internacionais, não faltam excelentes referências (frameworks). A título complementar, especificamente para o risco de fraude e corrupção, as “ferramentas” (manuais, guias práticos, etc.) disponibilizadas por organizações de referências nestes domínios, em especial a nível internacional, são também cada vez maiores.
A nível nacional é de referir que, já em 2007, tinham sido elaborados pela Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), em conjunto com uma das Big Four de auditoria /consultoria, a PwC, manuais de auditoria interna devidamente alinhados com o atual paradigma da gestão de risco.
Dois anos mais tarde, em 1 de julho de 2009, especificamente para os riscos de corrupção e infrações conexas, o Conselho de Prevenção de Corrupção, aprovou uma Recomendação sobre planos de gestão daqueles riscos, o qual refere: "Os órgãos máximos das entidades gestoras de dinheiros, valores ou patrimónios públicos, seja qual for a sua natureza” ficam de, no prazo de 90 dias, elaborar planos de gestão de riscos e infrações conexas."
Em data mais recente, com a publicação em Diário da República do Decreto-Lei n.º 133/2013, o Governo estabelece os princípios e regras aplicáveis ao sector público empresarial. Para efeitos do disposto no diploma, o setor público empresarial abrange o setor empresarial do Estado e o setor empresarial local e nele se fixam normas relativas às estruturas de governo societário, com destaque para o modelo de governo assumido, que deverá assegurar a efetiva separação entre as funções de administração executiva e de fiscalização. A prevenção da corrupção surge referida e reforçada no artigo 46º, onde pode ler-se no seu nº 1:
"1 - As empresas públicas cumprem a legislação e a regulamentação em vigor relativas à prevenção da corrupção, devendo elaborar anualmente um relatório identificativo das ocorrências, ou risco de ocorrências, de factos mencionados na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º da Lei n.º 54/2008, de 4 de setembro."
No que respeita aos profissionais, quem estará melhor colocado para assegurar uma adequada prevenção no “terreno” são os Auditores Internos. Por exemplo, nos Hospitais EPE a função de auditoria interna é hoje obrigatória, está devidamente integrada na estrutura orgânica destas organizações e o seu papel foi reforçado em 2012, com as alterações introduzidas pelo Decreto-lei 244/2012 de 9 de Novembro.
Os Auditores Internos, por enquadramento profissional e normativo, têm um papel muito relevante na gestão de risco das organizações. Especificamente sobre o risco de corrupção, acaba de ser disponibilizado pelo prestigiado The Institute of Internal Auditors (IIA - EUA) um guia prático “Anti-Bribery and Anti-Corruption Programs”, o qual complementa, nomeadamente, o anterior guia “Internal Auditing and Fraud”.
Ou seja, não faltam excelentes referências em termos de modelos de boas práticas internacionais, temos uma classe profissional a quem foi dada uma missão muito relevante neste domínio, os Auditores Internos, e temos também enquadramento legal, normativo, bem como algumas iniciativas concretas. O que falta então ?
Privilegiar claramente a via da prevenção. De que forma? Algumas sugestões, entre outras medidas possíveis...
- Dinamizado pelas administrações centrais e regionais, sensibilizar efetivamente os diversos órgãos de gestão (workshops, formação, etc.), os auditores internos e chefias intermédias em funções, acerca do enquadramento e da importância atual da gestão de risco das organizações, onde se integram os riscos de fraude e corrupção, de acordo com o seu atual paradigma e modelos de melhores práticas internacionais.
- Avaliar nas diversas instituições que práticas de gestão de risco já existem, certamente ainda muito incipientes, não integradas e mais vocacionadas para a prática clínica, perspetivando, pelo menos, implementar uma gestão dos riscos de fraude e corrupção efetiva e eficaz, devidamente alicerçada num adequado sistema de controlo interno. Os planos de prevenção de corrupção elaborados oportunamente estão maioritariamente desatualizados e alguns, aquando da sua elaboração inicial, não atenderam devidamente à realidade das organizações a que respeitavam. É necessário tirá-los da “prateleira” e, com o patrocínio do órgão de gestão e a implicação da Auditoria Interna e dos principais interlocutores da organização, refazê-los no sentido de os tornar um instrumento efetivo de combate à fraude e corrupção.
- Os profissionais de Auditoria Interna deverão abandonar práticas de auditoria num formato tradicional a abraçar definitivamente o novo paradigma desta relevante função, integrando controlo e conformidade com gestão de risco e governance. Seria, naturalmente, muito útil apostar na formação avançada destes profissionais. Conforme já referido, a Auditoria Interna, embora com algumas salvaguardas, tem um papel chave na gestão de risco das organizações e, consequentemente, na gestão específica dos riscos de fraude e corrupção. Como tem sido feito por vezes, o auditor interno não pode limitar-se a pedir aos interocutores dos diversos serviços /departamentos que enumerem e descrevam os riscos com que são confrontados, confiando no seu posterior relato. Tendo presentes modelos de referência internacional em termos de gestão de risco, o órgão de gestão deve definir de que forma os riscos devem ser identificados, avaliados, etc., cabendo depois à auditoria interna uma avaliação e opinião independente do respetivo processo. Tudo tem que ser avaliado e monitorizado, incluindo os sistemas de controlo /mitigação dos riscos.
- Por outro lado, todos têm que ter presente de forma clara e objetiva o que é considerado corrupção e quais as suas fronteiras; aqui os códigos de conduta/ética poderão dar um excelente contributo.
- Os sistemas de informação têm também um papel muito importante, sobretudo podendo alertar e sinalizar atempadamente para situações ou transações potencialmente suspeitas; existem hoje no mercado diversas soluções informáticas com provas dadas, vocacionadas para fraude nas organizações. Os upgrades que têm vindo a ser concretizados em novas implementações informáticas, nas unidades de saúde, descuram normalmente a integração desta vertente.
Sendo de reconhecer o esforço e a evolução que tem vindo a ocorrer em termos de deteção da fraude e corrupção na saúde, cumpre agora evoluir também na vertente de prevenção, a qual estará mais nas mãos dos órgãos de gestão das próprias unidades de saúde. A Tutela, devendo ter um papel mais ativo no que respeita à deteção da fraude e corrupção por via das suas entidades de inspeção /auditoria, no âmbito da prevenção, o papel será mais pedagógico e de sensibilização, cabendo à própria gestão das unidades de saúde implementarem sistemas de gestão de risco eficazes, devidamente apoiados pela função de Auditoria Interna.
Podemos afirmar que estão criadas as condições mínimas para se evoluir gradualmente num combate que se deseja cada vez mais efetivo e eficaz. A vertente da prevenção é aquela que agora requer mais atenção e empenho, sobretudo por parte das próprias unidades de saúde; só desta forma surgirá uma primeira “vacina”, a qual, em função das mutações sucessivas do “vírus” da fraude e corrupção, terá de ser também melhorada sistematicamente, ao longo do tempo.