José António Moreira, Jornal i

 

A distância entre o real e o imaginário é muitas vezes tão ténue que não se sabe onde um acaba e o outro começa

“Match Point” é um filme de 2005, escrito e realizado por Woody Allen. Não teve uma crítica excecional, mas é um daqueles que o tempo não faz esquecer. É sobre a sorte. Na cena mais marcante, o protagonista, que vinha de assassinar a namorada, lança ao rio os pertencentes que trouxera consigo ao simular um roubo na casa desta, entre os quais uma aliança dourada. Lançada ao ar, esta cai, num equilíbrio instável, sobre um corrimão que bordeja o rio. Acabou por tombar em terra, mas é este elemento imponderável que determina o destino do assassino, que é ilibado.

A distância entre o real e o imaginário é muitas vezes tão ténue que não se sabe onde um acaba e o outro começa. No enredo do filme, tal como neste caso. O A. recupera do choque e combate a tensão que ainda sente contando aos amigos a sorte que teve em não ser o último acionista do BES. De férias, telefonara ao seu gestor de conta. Queria aplicar umas poupanças. “Invista metade do montante em ações do BES, que estão a muito bom preço, e não oferecem risco de maior”, foi a proposta. As sucessivas afirmações da solvabilidade da instituição, vindas de pessoas responsáveis pela regulação do sistema financeiro e pela governação do país, fizeram com que não se fechasse a essa proposta. Concordou que se colocasse uma ordem de compra a 10 cêntimos por ação. A suspensão da cotação durante a tarde de sexta-feira e a profusão de notícias alarmantes sobre a situação do banco que a partir daí foi vindo a público deixaram-no em pânico. Quando na segunda-feira de manhã telefonou ao gestor de conta foi informado que por um cêntimo a ordem não tinha sido executada. Desligou sem se ter despedido. A tensão nervosa que o consumia não lhe permitia falar.

Algures, haverá uma história para contar semelhante a esta, exceto num pequeno detalhe: a respetiva ordem de compra foi executada porque foi colocada exatamente pelo preço da ordem de venda. Falta de sorte. Anonimamente, o seu autor ficará para a História como o último acionista do BES. Mas o que interessa a História quando, num momento, as poupanças de uma vida se desvanecem, mais rápido do que o fogo consumiria o papel-moeda equivalente?

É suposto que intervenções na bolsa não são testes à sorte. Apesar de na gíria popular o investimento em ações ser muitas vezes referido como “jogar na bolsa”, o facto é que, como qualquer outro investimento, deveria ser um ato racional, não isento de risco é certo, mas assente em informação que alguém certifica.

É neste domínio da informação que no caso BES todas as dúvidas surgem. Quero acreditar que tudo se precipitou inesperadamente na dita sexta-feira, em que o regulador, com a informação disponível, decidiu auxiliar a sorte com ações concretas que concorreram para que o sistema financeiro português, que oscilava no “fio da navalha”, não tivesse tombado para o abismo.

Quero acreditar. Mas por mais que me esforce não consigo. O tempo irá continuar a proporcionar pequenos desenvolvimentos do caso, como já vem acontecendo, dando volume a uma narrativa inicialmente apresentada a duas dimensões. Ainda a “procissão vai no adro”. As grandes auditoras estão a postos, os gabinetes de advogados atualizam os códigos e desempoeiram as togas. Vão faturar, na proporção das muitas ações judiciais que irão ser interpostas. Há uma questão a que ninguém ousa, para já, responder: quem vai pagar a “fatura”?

Oxalá desta vez os contribuintes tenham a sorte do seu lado.