Colaboração no livro da European Anti Poverty Network (Rede Europeia Anti-Pobreza):
Ferreira, Helder, Nuno Gonçalves, and Óscar Afonso. 2014. Sobre(vidas). A economia informal e a inclusão social de públicos desfavorecidos. Porto: EAPN Portugal.
"... gostava que o que falamos aqui desse para os técnicos desenvolverem, para poderem aplicar na solução de uma sociedade melhor... que fosse mais justa... e que se desse... não é mais valor aos velhos, não, não é isso... mas que se valorizasse as pessoas por aquilo que elas são capazes de fazer e não por aquilo que elas têm"
Do Prefácio:
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1. O meu primeiro contacto intelectual com a economia informal foi nos fins dos anos sessenta do século passado. A América Latina era então um espaço de grandes embates sociais e teóricos. O estruturalismo cepalista, de Raúl Prebisch, Celso Furtado e muitos outros, retratava o confronto entre um modo de vida com raízes milenares e a rápida e massiva penetração do capitalismo americano, hegemonizado após a II Guerra Mundial. Em vez da melhoria das condições económicas e sociais das populações gerava uma sociedade desintegrada, dualista, promotora de subdesenvolvimento. A economia informal significava marginalização e exclusão de uma parte da população por incapacidade da expansão capitalista integrar os modos de produção anteriores.
Hoje, quando falamos em economia informal continuamos a defrontarmo-nos com manifestações formalmente semelhantes: marginalização, exclusão, deficientes condições de vida.
Contudo há profundas diferenças entre a realidade de então e a de hoje.
Então a designação “economia informal” era adoptada como sinónimo de economia paralela (economia não registada como correctamente se designa neste livro). Hoje a economia informal é apenas uma parte, quiçá mínima, desse agregado bem mais vasto.
Então a economia paralela era uma especificidade dos países designados como subdesenvolvidos pelo discurso de Truman de 1949, quase completamente ausente dos restantes (sem modos de produção pré-capitalistas, com reduzida fraude e circuitos ilegais pontuais e controláveis). Hoje é uma realidade mundial assumindo, nas últimas três décadas, uma importância crescente, ao mesmo tempo que a economia ilegal se torna estruturante de uma criminalidade económica internacional e a economia subterrânea (não cumprimento das obrigações fiscais) tem hoje canais oficiais de concretização.
Então a economia informal era expressão de uma não integração capitalista. Hoje é um (sub)produto do capitalismo globalizado e hegemónico após a simbólica queda do muro de Berlim.
Então, com um crescimento económico assente na industrialização e no consumo de massas, a economia informal expressava privilégios remotos e relações de produção estruturadas na propriedade da terra. Hoje é o capitalismo (assente na hegemonia dos bancos, da bolsa, da livre circulação do capital, enfim na financeirização) que transforma a apropriação de rendimentos (sem os produzir) numa das formas dominantes de enriquecimento de uma estreita minoria.
Então a redução da economia informal era um objectivo e tinha como alternativa metafórica o acesso a novos bens, até porque esse exército de consumidores marginalizados representavam expansão dos mercados. Hoje a economia informal é um dos suportes do funcionamento do capitalismo, é um exército contra o aumento dos salários e pelo nivelamento remuneratório à escala mundial pelo valor mais baixo.
Quando a União Europeia adiou recentemente a aplicação de uma taxa sobre as transacções financeiras, e já antes tinha exigido que os pequenos agricultores que colocam os restos da sua produção no mercado local obedeçam às regras contabilísticas e fiscais como se empresas fossem, não estamos perante um equívoco ou uma ausência de liderança política. É o capitalismo globalizado no seu esplendor.
2. Quando abrimos um jornal o peso das notícias sobre economia é muito grande. Até as catástrofes naturais não são medidas em mortes, perturbação da vida das famílias, carências alimentares e habitacionais, mas em milhões de dólares, ou euros, de prejuízo. O economicismo é o vector estruturante da presente ideologia dominante, copulado no fideísmo dos mercados.
A história do quotidiano é narrada na perspectiva dos vencedores. As cotações da bolsa, os grandes negócios, a política e a diplomacia económicas preenchem muitas colunas, marginadas entre a verdade e a mentira. A interpretação dos acontecimentos nas lucubrações de administradores executivos, de ministros e presidentes, parlamentares, porta-vozes e fazedores de opinião sobrepõe-se à análise rigorosa dos dados, a uma leitura totalizante e interligada. Uma mentira política ocupa mais espaço noticioso que uma verdade científica.
É certo que a liberdade democrática, mesmo sem a seiva de uma democracia económico-social, permite que haja jornalismo idóneo, que os anseios populares se espalhem nos relatos, que algumas leituras alternativas surjam, mas nada disso impede uma tendência inevitável: o domínio do relato dos vencedores, do economicismo (ideologia da inevitabilidade, ideologia aparentemente desideologizada), que bloqueia a transparência de que “um cidadão um voto” pode representar “um euro um voto” em sociedades contemporâneas. “Um euro” que por vezes traz o odor da corrupção e da fraude, do branqueamento de capitais, enfim, das infracções económico-financeiras.
Poderíamos admitir que as Universidades seriam uma contratendência, enquanto instituições de reflexão crítica, inovação e rigor. De facto são-no, mas com um crescente monolitismo teórico. No ensino da Economia, salvo algumas excepções, os modelos solipsistas sobrepõe-se às visões sociais; a concorrência, a eficiência e os mercados valem muito mais que a solidariedade e a ética; a optimização é a chave do sucesso, mesmo que contra tudo e todos. O monolitismo teórico obstaculiza a crítica, o debate de ideias, a esplendidez humana dos desafios heterodoxos, irreverentes porque democráticos.
Os estudantes, à partida sem qualquer experiência da actividade económica, imbuídos da informação dominante e moldados por esse mundo conceptual substituem a leitura da sociedade pela sua filtragem através dos modelos que aprenderam. Quem ensina reproduz o que aprendeu, a progressão na carreira exige investigação e publicações que sejam concordantes com os colégios invisíveis das revistas e editoras. Toda esta dependência dos vencedores faz-se desapercebidamente para presentes e futuros economistas.
3. Este livro tem de ser lido e entendido dentro deste contexto, para que se faça jus à sua importância É uma leitura da sociedade portuguesa pelos olhos de quem não acede ao poder político, não controla os mercados, não financia as campanhas eleitorais e não compra favores. É uma leitura dos destroçados pelo económico. De quantos viver é sobreviver.
Este livro permite-nos conhecer uma parte da realidade que se esconde à nossa consciência possível. É relevante e dilacerante, profundo e inquietante, rigoroso e alternativo, enfim, é um pouco da história dos vencidos. Vencidos mas cidadãos, vencidos mas indispensáveis, vencidos mas em grande número. E porque são os vencidos que estão hoje no centro da renovação que o mundo actualmente exige, como frequentemente tem sido explicitado pelo Papa Francisco:
“Enquanto não forem radicalmente solucionados os problemas dos pobres, renunciando à autonomia absoluta dos mercados e da especulação financeira e atacando as causas estruturais da desigualdade social, não se resolverão os problemas do mundo e, em definitivo, problema algum. A desigualdade é a raiz dos males sociais.” (Evangelii Gaudium)
4. Economia não-regisitada informal versus economia não-registada subterrânea ou ilegal, trabalho não declarado versus trabalho declarado, exclusão versus inclusão, públicos desfavorecidos versus favorecidos, sobreviver versus viver. É o traçar de uma “fronteira” que une as duas faces de uma mesma moeda, que não se compagina satisfatoriamente com os modelos, que não se transforma por decreto, que existe mesmo que as elites o queiram negar ou vilipendiar, que tem expressões quantitativas alarmantes, alastrando-se a novos espaços que a crise económico-financeira e a miopia financiarizada da Europa têm sabido invadir. A nudez forte da verdade ressalta neste livro.
Podem alguns dizer que a economia vai bem, mas muitos mais sentirão que as pessoas vão mal. Um mau estar que exige e aconselha uma intervenção cívica e moral cujas linhas de força sobressaem de cada linha deste livro.