Aurora Teixeira, Visão on line,
“É uma pena que todas as pessoas que sabem como é que se governa o país estejam ocupadas a conduzir táxis ou a cortar cabelo.”, George Burns (n. 1896 – m. 1996)
No passado dia 27 de março estive presente no 6º Seminário de Bioética na Escola Superior de Saúde de Viseu subordinado ao tema “Conduta Ética: Integridade Académica e Profissional”, tendo tido o privilégio de ouvir a magnífica palestra do pediatra Filipe Almeida (Centro Hospitalar de São João/Faculdade de Medicina da Universidade do Porto) sobre a bioética e a problemática do consentimento informado.
O consentimento informado é uma das principais regras da norma ética aplicada ao profissional de saúde, sendo garantido ao paciente o direito de decidir em relação ao que lhe é colocado como forma de tratamento, respeitando a sua capacidade de autodeterminação.
Dadas as difíceis condições económicas e sociais que muitos portugueses hoje em dia enfrentam à conta de uma ‘prescrição’ austera para, dizem as autoridades de política, sanar as ‘maleitas’ de uma economia débil, com enormes fraquezas estruturais, condimentadas por anos sucessivos de desgoverno das contas públicas, não pude deixar de fazer um paralelo entre a relevância que o consentimento informado ocupa na área da saúde e aquela que poderia e, na minha opinião, deveria ter na relação entre o cidadão comum (o ‘doente’ que participa nos ‘ensaios clínicos’ trokianos) e o governo (‘profissional de saúde’).
De acordo com o relatório final sobre ‘Consentimento Informado’ da Entidade Reguladora da Saúde1, “[u]ma das razões que sustenta a existência de consentimento informado prende-se com o facto de se admitir ser um benefício para o doente a sua participação activa [e voluntária] nas decisões sobre os cuidados médicos a que se submete. (…) tem ainda a vantagem adicional de tornar o doente consciente das implicações das suas opções, o que terá importantes consequências futuras...”. Assim, “[o] consentimento informado assegura não só a protecção do doente contra a sujeição a tratamentos não desejados, como uma participação activa na definição dos cuidados de saúde a que é sujeito.” É ainda referido neste documento que “[p]ara um consentimento informado de qualidade, a comunicação eficaz é fundamental e as instituições devem instaurar mecanismos que a assegurem...”
Começando pelo fim destas passagens.
- ‘Comunicação eficaz’
Tem sido, nesta legislatura, uma quimera. São inúmeros os episódios anedóticos que levam os portugueses às lágrimas, no verdadeiro sentido da palavra, o último dos quais associado à já famosa polémica do ‘briefing’ do Ministério das Finanças sobre os cortes nas pensões de reforma, que o vice-primeiro ministro Paulo Portas rotulou de “Um erro” e que deixou (ainda mais) a descoberto a falta de preparação dos nossos governantes na relação com os órgãos de comunicação, em geral, e com as vítimas do ‘tratamento clínico’, o ‘povinho’, em particular.
Assim, parece difícil assegurar um ‘Consentimento Informado’ quando o ‘médico’ não sabe literalmente qual o mal do qual padece o doente, nem pouco mais ou menos qual o tratamento a implementar. Testemunhando esta ignorância generalizada, reportava na passada terça-feira (1 de Abril) o Diário de Notícias: “Reunião inconclusiva do Conselho de Ministros para definir Documento de Estratégia Orçamental. Executivo só sabe para quanto tem de descer o défice (de 4% para 2,5%)” [o sublinhado é meu!].
- ‘Participação activa e voluntária’ do ‘paciente’ nas decisões sobre os ‘cuidados médicos’ a que se submete.
Apesar da participação ‘ativíssima’ do ‘paciente’ – a consolidação orçamental tem sido conseguida sobretudo via cortes nas pensões e salários e ‘enorme aumento de impostos’ (expressão ‘celebrizada’ pelo ex-ministro das Finanças Vítor Gaspar, perito em previsões erradas, que em junho próximo vai ganhar cerca de 23 mil euros mensais como diretor de Assuntos Orçamentais do Fundo Monetário Internacional) – não me parece que tal participação possa ser classificada de ‘voluntária’. De facto, após a assembleia-geral de 29 de março da Confederação Nacional de Reformados, Pensionistas e Idosos, Casimiro Menezes, o seu presidente, sublinhou que existe um descontentamento muito grande dos reformados e idosos pelos cortes nas pensões e uma grande preocupação com a perspetiva de o governo transformar em definitivo o que foi anunciado anteriormente como provisório. No que respeita aos cortes salariais, parece óbvia a ‘coação’ exercida sobre os funcionários públicos, agravada pela falta de clareza do Governo sobre a forma como irá substituir os cortes salariais que estão em vigor desde 2011 e que no início do ano foram agravados. O que é claro é que a solução vai passar pelo corte dos suplementos e pela revisão da tabela remuneratória, não obstante a especificação concreta do modus operandi destas medidas ficar para … depois das Eleições Europeias!
É importante sublinhar que o conceito de consentimento informado é composto, para além do ‘Livre consentimento’ (incompatível, por isso, com a coacção e a pressão de terceiros), por uma componente fundamental, a ‘Compreensão’. Refere o documento da Entidade Reguladora da Saúde, que “a compreensão inclui a informação e o conhecimento quer da situação clínica, quer das diferentes possibilidades terapêuticas. Implica, por via de regra, o fornecimento de informação adequada sobre o diagnóstico, prognóstico e terapêuticas possíveis com os riscos inerentes, incluindo os efeitos da não realização de qualquer terapêutica. A informação que sustenta a compreensão deve ser fornecida numa linguagem compreensível pelo doente, qualquer que seja o seu nível cultural…” [o negrito foi adicionado por mim].
Quando o próprio ‘profissional de saúde’, ou seja, neste paralelismo, o Governo, não sabe, ou é incapaz de fornecer “informação adequada sobre o diagnóstico, prognóstico e terapêuticas possíveis com os riscos inerentes”, como é que o ‘paciente’, i.e. o cidadão comum, ativo mas frequentemente coagido a participar na ‘experiência’, entenderá o alcance e a ‘virtuosidade’ das possíveis ‘terapêuticas’?
Para terminar este minha excursão que já vai longa, e socorrendo-me mais uma vez das palavras do pediatra Filipe Almeida, para obtermos um Consentimento Informado eficaz, com valor, é imprescindível a ‘humanização’, isto é, a preocupação com a situação do paciente, que implica um elevado nível de maturidade do ‘profissional de saúde’. Como sabiamente expressou Albert Einstein, “A maturidade começa a manifestar-se quando sentimos que nossa preocupação é maior pelos demais que por nós mesmos.”
Do exposto concluo que a ausência de comunicação eficaz, a participação involuntária do ‘paciente’ e a imaturidade do Governo tornam o ‘Consentimento Informado’ uma manifesta impossibilidade em Portugal na área da relação entre o Governo e os cidadãos.
Nota:
1 In https://www.ers.pt/uploads/writer_file/document/73/Estudo-CI.pdf.