Carlos Pimenta, Público
1. A economia paralela é uma preocupação transversal à sociedade portuguesa. Ao mesmo tempo que se reivindica o seu fim no cartaz de manifestação, está nas preocupações do governo ao analisar a política fiscal. Muitos reivindicam contra ela, vários declaram ou fingem combatê-la e alguns manipulam e controlam a sua existência e os seus avolumados benefícios. São quarenta e quatro mil milhões em 2012, representando 26,7% do produto interno bruto oficial do país, isto é, conforme com os registos da contabilidade nacional. Um montante de actividades que se pagassem impostos faria com que não tivéssemos “excessivo” défice no orçamento do Estado (admitindo, com muita improbabilidade, que toda a sua actividade está aí reflectida).
Mas não são só os montantes. Também conta a tendência de evolução dessa economia não-registada que passa de 9,2%, em 1970, para o montante acima referido, conforme os estudos do Observatório de Economia e Gestão de Fraude.
Responsabilidade de cada um de nós? Responsabilidade do governo, bode expiatório das nossas desilusões? Responsabilidade do sistema, declarada quando não conseguimos identificar as causas?
2. Quando, no início do presente milénio, estudámos a globalização, quando as turbulências da crise ainda não existiam mas eram previstas, a partir da observação das suas características (subestimação das actividades produtivas, poder crescente do sector financeiro, aumento da importância relativa das actividades especulativas e da circulação do capital, fictício, totalmente desligado da satisfação das necessidades da sociedade e de todos nós) concluimos da existência de uma importante actividade ilegal (droga, órgãos humanos, espécies protegidas, armamento, escravatura, etc.). Acrescentariamos hoje, uma forte dimensão da fraude e da corrupção, do branqueamento de capitais.
Os crimes socialmente mais relevantes são praticados por quem está profundamente integrado na sociedade, pela criminalidade de colarinho branco.
A crise de 2007 poderia ter conduzido a uma alteração dos modelos de comportamento, como pareciam indiciar algumas declarações políticas de então, mas o poder económico conseguiu subjugar o poder político, e tudo continuou parecido. Demonstram-no as políticas assumidas e a realidade dos paraísos fiscais e tributários, vulgo offshores, que são espaços legalmente constituídos e politicamente suportados para dificultar a criminalização nacional dos actos ilícitos, para aproximar actividades legais e a criminalidade económica internacional, para disfarçar a grande corrupção, para fluir o branqueamento de capitais, para implantar empresas-fantasma e reforçar a fraude fiscal.
E tudo isto está estreitamente associado a uma profunda desigualdade na distribuição do rendimento, assumindo frequentemente formas que qualquer moral do senso comum rejeitaria: as fraudes e crimes de uns (uma elite económica e política defraudadora) são pagas pelos que nada têm a ver com o assunto e, muitas vezes, se encontram no limiar que separa viver do de sobreviver. Para que o capital financeiro não se desvalorize, desvalorizam-se as condições de vida das populações.
O sistema económico e social actualmente existente é responsável: é o “Preço da Desigualdade”, para referir o título dum recente livro de Stiglitz. Mas a responsabilidade não se dilui: há actores responsáveis e reconhecidos.
3. A tendência de aumento da economia não registada nas últimas décadas é, em primeiro lugar, resultado da integração do nosso país nesta dinâmica global da globalização. Contudo, tal não reduz a responsabilidade dos poderes políticos neste processo: durante grandes períodos tem havido uma cumplicidade e envolvimento nessa dinâmica internacional, facilitou-se o controlo de importantes segmentos do Estado pelo poder económico. A crise acelerou as tensões existentes e aumentou as desigualdades sociais no nosso país.
Neste contexto foi-se assistindo nacionalmente a um conjunto de actuações de curto prazo, mas duradoiras, que minaram a confiança entre o Estado e os cidadãos. Como diz Finura “a confiança (…) permite (…) aos indivíduos e às sociedades lidarem com a complexidade e a incerteza no mundo (…) porque se constitui ela própria num mecanismo de simplificação”. Quando ela se rompe, ou continua esfacelada, a incerteza avoluma-se, as relações sociais enfraquecem, a ética degenera, os desonestos reforçam o seu poder porque ficam em melhores condições de “vencer a concorrência”.
E há razões para essa quebra de confiança. A carga fiscal aumenta e os serviços públicos diminuem, ao mesmo tempo que os contratos com os cidadãos são unilateral e politicamente violados. A corrupção, a fraude fiscal e o crime económico-financeiro são menos combatidos que os “crimes de rua”, que o não cumprimento de obrigações de muitas famílias por estritas razões de sobrevivência. As desigualdades na distribuição do rendimento agravam-se obscenamente.
Esta falta de confiança cria grande incerteza no futuro, diluí a coesão social, reforça a barbárie. A Igreja Católica bem tem chamado a atenção para estas dinâmicas castradoras da dignidade humana.
4. Quanto às responsabilidades de cada um, elas são muito diferenciadas. Há quem canibalize, quem viva e quem sobreviva.
O Homem deveria ser a razão da actividade económica, mas quem anseia respeito e dignidade tem de procurar substituir o Estado-mercado pelo Estado-nação, para utilizar a terminologia de Napoleoni.
Só em democracia se reduz a economia não-registada, mas não acontecerá enquanto o poder político estiver exclusivamente subjugado à dinâmica económica, aos “mercados”.