Óscar Afonso, ECO Magazine
A economia não reage a atos de fé, mas a ganhos sustentados de produtividade, à qualidade das instituições e à coerência das escolhas políticas ao longo do tempo
Há momentos na política económica em que a análise cede lugar à crença, a evidência é substituída por esperança e o discurso público passa perigosamente da economia para a fé. É um desses momentos que me motiva a escrever esta crónica.
O contexto em análise: Pacote laboral, greve geral e a promessa de aumento do salário mínimo e médio
O debate recente em Portugal em torno da reforma laboral, da evolução dos salários e da greve geral de 11 de dezembro constitui um desses momentos paradigmáticos. Promete-se um salário mínimo de 1600 euros e um salário médio de 3000 euros como quem anuncia uma redenção futura, abstraindo-se quase por completo da dimensão temporal do processo económico, como se os ajustamentos estruturais ocorressem por decreto e os seus efeitos fossem imediatos. Pede-se paciência aos trabalhadores num tom que roça o apelo à crença, e desvaloriza-se a contestação social como se se tratasse de um ato de heresia económica, incompatível com a narrativa oficial.
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Tudo isto assenta numa construção discursiva básica e simplista do tipo: “confiem na reforma, confiem no mercado, confiem no Governo, e os salários mais altos acabarão por surgir”. Ora, mesmo reconhecendo que o livre funcionamento dos mercados tende, em regra, a promover eficiência na afetação de recursos, a evidência económica mostra de forma consistente que essa eficiência não é automática nem garantida. Os mercados estão sujeitos a falhas — desde assimetrias de informação e externalidades negativas, até situações de poder de mercado e abuso de posição dominante — que comprometem o bem-estar coletivo. Nesses contextos, a intervenção pública não só é legítima como necessária.
Cabe ao Estado, nomeadamente, criar e preservar condições de concorrência efetiva, impedir práticas anticoncorrenciais, refrear concentrações excessivas de poder económico e corrigir externalidades que o mercado, por si só, não internaliza. O funcionamento eficiente dos mercados depende criticamente da qualidade das instituições que os enquadram: os mercados funcionam melhor quando operam em contextos institucionais fortes, inclusivos e previsíveis — um pressuposto que, em Portugal, está longe de estar plenamente assegurado.
A abordagem desta crónica poderá ser incómoda para alguns, mas considero ser adequada e bastante pertinente no contexto atual. Começa por interrogar o que a evidência científica nos diz — e, sobretudo, o que não nos diz — sobre o papel da fé, explícita ou implícita, na economia, incluindo na formulação e justificação das políticas económicas. A partir daí, desenvolvo uma análise crítica das promessas salariais associadas à reforma laboral, procurando demonstrar por que razão, à luz das condições estruturais da economia portuguesa, essas promessas se aproximam mais de um exercício de retórica e crença projetada no futuro do que de um compromisso economicamente sustentado e institucionalmente credível.
Analiso ainda a greve geral de 11 de dezembro não como um choque económico de relevo, mas como a expressão visível de um mal-estar político e social profundo: o de um país crescentemente descrente das lideranças que o têm governado ao longo das últimas décadas, salvo honrosas exceções que souberam, em momentos concretos, cumprir de forma responsável e eficaz a missão fundamental que lhes estava confiada.
Essa descrença não resulta apenas da estagnação económica ou da frustração salarial, mas também da perceção persistente de injustiça e de erosão da coesão social e territorial, num contexto em que continuam a faltar respostas credíveis e eficazes em domínios centrais da vida coletiva, como a saúde, a habitação, a justiça ou o acesso equitativo a oportunidades. Este vazio de respostas substantivas cria um terreno fértil para a proliferação de discursos populistas simplificadores, frequentemente importados de outros contextos nacionais, que prometem soluções fáceis para problemas estruturalmente complexos, agravando ainda mais a fragmentação social e a desconfiança institucional.
A economia não reage a atos de fé, mas a ganhos sustentados de produtividade, à qualidade das instituições e à coerência das escolhas políticas ao longo do tempo. Confundir crença com evidência empírica não é apenas um erro analítico; é um luxo que um país estruturalmente marcado por baixos salários, fraca mobilidade social e persistentes assimetrias territoriais já não se pode permitir. As promessas que ignoram estas restrições não produzem crescimento e apenas geram maior descrença nas lideranças à população, farta de discursos desligados da realidade.
A conclusão é simples, ainda que politicamente incómoda: A economia não reage a atos de fé, mas a ganhos sustentados de produtividade, à qualidade das instituições e à coerência das escolhas políticas ao longo do tempo. Confundir crença com evidência empírica não é apenas um erro analítico; é um luxo que um país estruturalmente marcado por baixos salários, fraca mobilidade social e persistentes assimetrias territoriais já não se pode permitir. As promessas que ignoram estas restrições não produzem crescimento e apenas geram maior descrença nas lideranças à população, farta de discursos desligados da realidade.
É verdade que uma maior flexibilidade em matéria laboral pode, em determinados contextos, gerar ganhos de eficiência, como a literatura económica amplamente documenta. Contudo, essa evidência está longe de ser universal ou mecanicamente transferível entre países. Os mercados de trabalho são moldados por arquiteturas institucionais profundamente distintas, que refletem histórias económicas, equilíbrios sociais e contratos implícitos entre capital e trabalho. Pretender importar soluções padronizadas, desconsiderando o enquadramento institucional, a estrutura produtiva e o nível de confiança social existentes em Portugal, é metodologicamente frágil e politicamente arriscado.
Mais ainda, avançar contra as forças sociais representadas na concertação social, marginalizando sindicatos e parceiros sociais, pode gerar instabilidade evitável e minar os próprios objetivos proclamados pela reforma. A evidência histórica sugere que reformas duradouras e economicamente eficazes são aquelas que resultam de compromissos institucionais amplos, capazes de alinhar incentivos, reduzir incerteza e reforçar a coesão social. Ignorar esta dimensão não acelera o caminho para salários mais elevados; pelo contrário, pode atrasá-lo, comprometendo aquilo que verdadeiramente importa: uma trajetória sustentável de aumento da produtividade e de melhoria efetiva das condições de vida.
Haverá, com elevada probabilidade, vias mais eficazes e ajustadas ao contexto português para promover uma reforma laboral consequente do que a apresentação apressada de mais de uma centena de propostas de alteração ao Código do Trabalho. A fragmentação excessiva da intervenção legislativa tende a diluir prioridades, a gerar incerteza jurídica e a dificultar a apropriação das mudanças pelos agentes económicos. Como bem recorda o adágio popular, o ótimo é frequentemente inimigo do bom, sobretudo quando a ambição formal não é acompanhada de real capacidade de implementação.
Introduzir um número limitado de alterações, cuidadosamente selecionadas, em domínios onde exista evidência de impacto económico e social relevante, e fazê-lo com o acordo das confederações patronais e sindicais no âmbito da concertação social, parece uma estratégia mais prudente e institucionalmente sólida. Uma reforma estrutural não se mede pela quantidade de artigos alterados, mas pela sua capacidade de alinhar incentivos, reduzir conflitos distributivos e reforçar a confiança entre parceiros sociais. Essa via negociada, gradual e focada no essencial continua a ser não apenas mais sensata, mas também politicamente viável, se houver vontade genuína de reformar em vez de apenas legislar.
Uma reforma que mereça verdadeiramente esse nome exige, antes de mais, que se fale com clareza dos bloqueios existentes. Implica identificar e analisar de forma detalhada a evolução recente e a situação atual dos principais obstáculos à modernização da economia, do Estado e das políticas públicas, em domínios fundamentais como a produtividade, a organização do tecido empresarial, a qualificação do capital humano, o funcionamento da administração pública, a justiça, a regulação e a qualidade das instituições. Sem esse diagnóstico rigoroso e partilhado, qualquer proposta corre o risco de se limitar a um conjunto avulso de medidas, desligadas entre si e do contexto estrutural em que se inserem. Acresce que, para que uma reforma seja efetivamente uma reforma, e não apenas uma sucessão de alterações legislativas, é indispensável que vá além da enumeração de iniciativas, incorporando de forma explícita a sua calendarização, os mecanismos de implementação e uma avaliação credível do impacto económico, social e institucional esperado ao longo do tempo.
Haverá, com elevada probabilidade, vias mais eficazes e ajustadas ao contexto português para promover uma reforma laboral consequente do que a apresentação apressada de mais de uma centena de propostas de alteração ao Código do Trabalho. A fragmentação excessiva da intervenção legislativa tende a diluir prioridades, a gerar incerteza jurídica e a dificultar a apropriação das mudanças pelos agentes económicos. Como bem recorda o adágio popular, o ótimo é frequentemente inimigo do bom, sobretudo quando a ambição formal não é acompanhada de real capacidade de implementação.
Continuo a entender que não é prudente, neste momento, pronunciar-me de forma detalhada sobre medidas concretas do pacote laboral em discussão. A única exceção foi a proposta de alteração à licença de amamentação, que considerei desajustada e desnecessária, e relativamente à qual o Governo acabou, entretanto, por recuar. De resto, parece-me mais responsável aguardar pelo desfecho das negociações em curso com os parceiros sociais, num contexto político que não é neutro e que é claramente condicionado pelo calendário eleitoral, em particular pelas eleições presidenciais, que influenciam inevitavelmente o posicionamento do atual líder da oposição enquanto candidato.
Acresce que essa prudência é ainda mais justificada pela expectativa das conclusões do estudo sobre reformas estruturais que a Faculdade de Economia da Universidade do Porto (a FEP) está a desenvolver a pedido da Associação Comercial do Porto. Esse trabalho, ancorado em análise empírica e comparada, poderá trazer contributos relevantes para um debate que tem sido excessivamente marcado por posições apriorísticas e por lógica de curto prazo. Num domínio tão sensível como o mercado de trabalho, importa que a decisão política seja informada por evidência robusta e por um diagnóstico rigoroso da economia portuguesa, e não apenas pela urgência de sinalizar ação reformista.
Fé e economia: O que a ciência realmente nos diz
A promessa de aumentos substanciais dos salários sem base substantiva roça o domínio da fé, pelas razões aduzidas anteriormente. Contudo, tudo indica que o eleitorado distingue claramente a esfera da fé, que muitos consideram importante na esfera pessoal, da condução da política económica, que seve ser baseada em evidência, resultados e credibilidade institucional, e não em apelos implícitos à confiança ou à esperança num futuro indefinidamente adiado. A greve geral é um exemplo disso mesmo, a meu ver.
Independentemente da real magnitude da paralisação causada pela greve geral de 11 de dezembro, questão que abordo mais adiante, é inequívoco que existiu contestação social significativa ao pacote laboral. Essa contestação produziu já efeitos políticos concretos, traduzidos no recuo do líder da oposição, recuo esse que o Governo dificilmente poderá ignorar se pretender assegurar apoio parlamentar para a aprovação das medidas. A alternativa passaria por apresentar um acordo substantivo em sede de concertação social, capaz de legitimar politicamente a reforma e, eventualmente, de viabilizar o apoio do PS. Contudo, esse caminho implicaria necessariamente a concessão de contrapartidas relevantes aos parceiros sociais, com custos políticos e orçamentais que o Governo poderá não estar disposto a assumir.
A relação entre fé e desempenho económico tem intrigado os economistas há várias décadas. Trago este tema apenas porque, no debate político e económico recente, se multiplicam discursos que recorrem implicitamente a verdadeiros exercícios de fé, mais do que a argumentos ancorados em evidência empírica, como é o caso aqui exposto.
Desde Max Weber e a sua conhecida associação entre a ética protestante e o espírito do capitalismo, que a literatura procura compreender se, e em que medida, as crenças religiosas moldam de forma estrutural os comportamentos económicos. A investigação empírica contemporânea, porém, oferece uma leitura muito menos linear e substancialmente mais complexa do que essa narrativa fundacional poderia sugerir.
A evidência disponível aponta para um resultado claro: não é a religião em si que gera crescimento económico, mas sim determinados valores que, em contextos específicos, podem estar correlacionados com a religiosidade. Entre esses valores destacam-se a disciplina no trabalho, a confiança interpessoal, a propensão para a poupança, o respeito por contratos e por normas sociais. Ainda assim, a literatura é cautelosa e inequívoca num aspeto central: os efeitos são ambíguos, dependem dos canais considerados e variam significativamente consoante o enquadramento institucional.
Estudos internacionais de referência, como o de Barro e McCleary (2003), Religion and Economic Growth, mostram precisamente essa ambivalência. Por um lado, crenças religiosas profundas, entendidas como sistemas de valores internalizados, podem correlacionar-se positivamente com o crescimento económico. Por outro, níveis elevados de prática religiosa formal, como a frequência regular de cultos, tendem paradoxalmente a associar-se a taxas de crescimento mais baixas. Em termos simples, acreditar e agir de acordo com certos valores pode ser relevante; desviar tempo e recursos produtivos para rituais formais pode não o ser.
Este resultado é particularmente relevante para o debate atual em Portugal, onde se parece assumir que a crença numa reforma, por si só, produzirá crescimento e salários mais elevados.
Mais importante ainda, não existe na literatura económica séria qualquer suporte para a ideia de que a fé, seja ela religiosa ou ideológica, possa substituir reformas económicas bem desenhadas. A economia não responde a intenções morais nem a proclamações de boa vontade; responde a incentivos claros, a instituições eficazes e inclusivas, e a ganhos sustentados de produtividade. Converter valores em prosperidade exige políticas públicas coerentes, investimento continuado em capital humano, inovação e um enquadramento institucional sólido, em particular no mercado de trabalho, que consiga equilibrar eficiência económica com justiça social e coesão.
Esta distinção é crucial para compreender o debate atual em Portugal. Quando se pede aos trabalhadores que “acreditem” que uma reforma laboral, tal como apresentada, conduzirá inevitavelmente – e de forma isolada, não integrada num pacote coerente e amplo de reformas estruturais – a salários de nível europeu, está-se a recorrer a um apelo mais próximo da fé do que da realidade económica observável e da evidência científica disponível.
Salário mínimo, salário médio e a aritmética incómoda
A promessa implícita do Primeiro-Ministro, nos dias que antecederam a greve geral, de que a reforma laboral permitirá elevar o salário mínimo para cerca de 1600 euros e o salário médio para 3000 euros — num claro esforço de legitimação política da reforma — é, sem dúvida, sedutora. Contudo, à luz dos factos disponíveis, não ultrapassa o plano da retórica, desde logo pela ausência total de um calendário político vinculativo e de uma trajetória económica credível que a sustente.
Perante a reação pública a essas declarações, o Ministro das Finanças procurou, mais tarde, introduzir uma clarificação relevante, sublinhando que não se tratava de um compromisso, mas apenas de uma “ambição” do Primeiro-Ministro.
A fragilidade desta promessa torna-se ainda mais evidente quando confrontada com os números efetivamente inscritos nos acordos em vigor. O Acordo de Concertação Social assinado a 1 de outubro de 2024, intitulado Acordo Tripartido sobre Valorização Salarial e Crescimento Económico 2025-2028, estabelece uma trajetória clara e moderada para o salário mínimo nacional, com aumentos anuais de 50 euros. Assim, o salário mínimo passaria de 870 euros em 2025 para 920 euros em 2026 — valor já inscrito na Proposta de Orçamento do Estado para 2026 —, 970 euros em 2027 e 1020 euros em 2028. Mantendo este ritmo em acordos futuros, o patamar dos 1600 euros apenas seria atingido, imagine-se, em 2040 (1620 euros, de forma rigorosa), o que ilustra bem o desfasamento entre o discurso político e as trajetórias formalmente acordadas.
Miranda Sarmento esclareceu que a meta política efetivamente assumida para o salário mínimo é a que consta do Programa do Governo: 1100 euros até ao final da legislatura, em 2029, condicionados, como não poderia deixar de ser, à evolução das variáveis económicas, em particular da produtividade. Acrescentou ainda que é possível “subir os salários no curto, médio e longo prazo se houver um forte aumento da produtividade”, aplicável tanto ao salário mínimo como ao salário médio, reconhecendo que, caso tal se verificasse, os salários poderiam crescer acima do previsto. Esta formulação é incomparavelmente mais realista, mas não elimina a dissonância criada pelo discurso inicial do Primeiro-Ministro, até porque continua a faltar uma ligação clara, empiricamente fundamentada e institucionalmente credível, entre o pacote laboral proposto e esse alegado “forte aumento da produtividade”.
De forma reveladora, quando questionado sobre o horizonte temporal para atingir os 1600 euros de salário mínimo, o ministro recusou avançar qualquer data, classificando esse exercício como “especulativo”.
A fragilidade desta promessa torna-se ainda mais evidente quando confrontada com os números efetivamente inscritos nos acordos em vigor. O Acordo de Concertação Social assinado a 1 de outubro de 2024, intitulado Acordo Tripartido sobre Valorização Salarial e Crescimento Económico 2025-2028, estabelece uma trajetória clara e moderada para o salário mínimo nacional, com aumentos anuais de 50 euros. Assim, o salário mínimo passaria de 870 euros em 2025 para 920 euros em 2026 — valor já inscrito na Proposta de Orçamento do Estado para 2026 —, 970 euros em 2027 e 1020 euros em 2028. Mantendo este ritmo em acordos futuros, o patamar dos 1600 euros apenas seria atingido, imagine-se, em 2040 (1620 euros, de forma rigorosa), o que ilustra bem o desfasamento entre o discurso político e as trajetórias formalmente acordadas.
No que respeita ao salário médio, o mesmo Acordo Tripartido aponta para um crescimento médio anual de 4,7%, ainda que com uma desaceleração progressiva, de 5,0% em 2024 para 4,5% em 2027 e 2028, ano em que o salário médio atingiria cerca de 1890 euros. Importa sublinhar que estes valores têm natureza meramente indicativa, dado que o salário médio não pode ser determinado por concertação social, dependendo diretamente da dinâmica económica e empresarial. O principal instrumento previsto é um incentivo fiscal em sede de IRC, permitindo às empresas deduzir 50% dos encargos associados a aumentos salariais de, pelo menos, 4,7%. É, contudo, razoável admitir que uma parte significativa das empresas portuguesas, sobretudo as de menor dimensão, que constituem a esmagadora maioria do tecido produtivo, terá dificuldade em cumprir estas condições para aceder ao benefício, o que torna esta trajetória, já de si moderada, relativamente otimista.
Admitindo esse valor otimista para 2028 e que acordos futuros manterão uma progressão média de 4,7% ao ano – um número também otimista face ao esgotamento dos ‘ventos’ favoráveis de que a economia tem beneficiado, que desenvolvo abaixo –, então só em 2039 chegaríamos aos 3000 euros prometidos/ ambicionados pelo Primeiro-Ministro (3132 euros, para ser exato). Este exercício evidencia de forma particularmente clara o profundo desfasamento temporal e económico entre a promessa política enunciada e a realidade estrutural da economia portuguesa, bem como a fragilidade das narrativas que ignoram restrições de crescimento, produtividade e capacidade institucional.
Regressando ao compromisso político de um salário mínimo de 1100 euros em 2029, este parece exequível à luz do Acordo Tripartido, implicando um aumento de 80 euros nesse ano, em vez dos 50 euros previstos nos anos anteriores. Num único ano, tal esforço poderá ser acomodado. A verdadeira questão é saber se a economia portuguesa consegue sustentar, a médio prazo, um ritmo mais elevado de crescimento do salário mínimo e, idealmente, do salário médio, que seja compatível com a produtividade, aceite pelos parceiros sociais e consagrado num novo acordo de concertação. A resposta, olhando para o desempenho histórico da economia portuguesa, é pouco animadora.
Efetivamente, esgotado o ciclo favorável mais recente, tudo indica que a economia portuguesa tenderá a regressar a um crescimento anémico próximo de 1% ao ano, padrão observado no primeiro quarto deste século, face à ausência de reformas estruturais profundas que alterem este rumo. Nos anos mais recentes a economia tem crescido um pouco mais apenas devido a combinação excecionalmente favorável de fatores externos e conjunturais, uma verdadeira nova “fornada de ouro do Brasil” – materializada na entrada maciça de fundos do PRR (a somar aos do PT-2030), num aumento descontrolado do número de imigrantes e num boom turístico sem precedentes após o fim do confinamento da pandemia. Portugal tem sido ainda beneficiado pela imagem de pais seguro, longe da guerra na Ucrânia, potenciando a atração de mais turismo e alguns investimentos.
Mesmo assim, o crescimento tem sido apenas marginalmente superior ao da União Europeia (UE), facto muito festejado pelos governos em funções, mas que se esquecem sempre de referir que esse referencial é pouco ambiciosos, pois é muito influenciado pelas economias maiores, há muito estagnadas (Alemanha, França e Itália), quando nos devíamos estar a comparar com as economias de leste – que entraram há menos tempo na UE, recebendo menos fundos do que Portugal, mas têm crescido muito mais, esperando-se que retomem um maior dinamismo quando a guerra na Ucrânia (que as tem penalizado) terminar.
Esse contexto favorável criou uma ilusão de dinamismo económico e de resiliência estrutural que, em larga medida, mascarou fragilidades antigas. Em vez de aproveitar esta janela rara para reformar o país, reforçar a base produtiva e orientar recursos para investimento transformador, optou-se sobretudo por uma estratégia de mais despesa, consumo e gestão de curto prazo, com impacto limitado na produtividade e no crescimento potencial da economia. O resultado é que, uma vez dissipados esses ventos favoráveis, o regresso à mediocridade do crescimento torna-se o cenário mais provável.
Neste enquadramento, o pacote laboral, tal como apresentado, não só não parece capaz de inverter essa trajetória, como corre o risco de ser mais um instrumento isolado num país que continua a adiar as reformas estruturais de que necessita para sustentar crescimento, salários mais elevados e convergência real com a Europa.
O aumento do salário mínimo desligado da produtividade, como tem ocorrido nos últimos anos, pode elevar mecanicamente o salário médio, mas fá-lo à custa da competitividade da economia. A carga contributiva face ao PIB aumenta, a compressão salarial intensifica-se e o salário mínimo aproxima-se perigosamente do salário médio, configurando uma economia de salários mínimos. As consequências são conhecidas: maior emigração, sobretudo dos mais jovens e qualificados, agravamento do declínio demográfico e enfraquecimento do potencial de crescimento.
Salários de padrão europeu não se alcançam com retórica. O salário médio não aumenta por decreto nem por crença, mas quando a economia gera mais valor por trabalhador e esse valor é efetivamente partilhado sob a forma de remunerações mais elevadas. Isso depende de qualificações, tecnologia, organização empresarial, investimento, inovação e qualidade institucional, e não apenas de maior flexibilidade laboral ou do enfraquecimento da negociação coletiva.
O aumento do salário mínimo desligado da produtividade, como tem ocorrido nos últimos anos, pode elevar mecanicamente o salário médio, mas fá-lo à custa da competitividade da economia. A carga contributiva face ao PIB aumenta, a compressão salarial intensifica-se e o salário mínimo aproxima-se perigosamente do salário médio, configurando uma economia de salários mínimos. As consequências são conhecidas: maior emigração, sobretudo dos mais jovens e qualificados, agravamento do declínio demográfico e enfraquecimento do potencial de crescimento.
O paradoxo é, assim, evidente. Promete-se prosperidade salarial futura sem calendário, em clara desconexão com as trajetórias assinadas em concertação social e até com os compromissos formais do próprio Governo, com base não num pacote coerente de reformas exequíveis, mas num exercício de fé relativamente a um anteprojeto laboral que tudo indica será reduzido ao mínimo denominador comum — seja por via de compromissos parlamentares, muito provavelmente com o Chega, seja através de uma versão ainda mais limitada negociada em concertação social, mediante contrapartidas cujo alcance permanece desconhecido. Só após as eleições de 18 de janeiro começaremos a perceber o que restará efetivamente do pacote e qual a sua real capacidade de transformar a economia portuguesa e elevar salários – até lá ainda ‘correrá muita tinta’ sobre o assunto, mas nada de substancial ocorrerá.
Quando a fé entra no discurso político como substituto do racional económico, a realidade não melhora; o que aumenta é a descrença dos cidadãos na política democrática, criando espaço para discursos populistas e para uma erosão adicional da confiança institucional.
A greve geral de 11 de dezembro, à semelhança das que ocorreram no passado, admite sempre duas leituras diametralmente opostas quanto à real dimensão da paralisação. De um lado, os números avançados pelas estruturas sindicais; do outro, os apresentados pelo Governo e pelas entidades patronais. Perante esta divergência recorrente, tende a fazer-se uma média empírica dos valores divulgados para obter uma aproximação mais realista. Ainda assim, essa discussão estatística é, no atual contexto, largamente secundária.
O que verdadeiramente importa é o momento económico em que esta greve ocorre. Ao contrário das greves gerais verificadas durante o período do programa de ajustamento económico e financeiro de 2011-2014, esta surge numa fase alta do ciclo económico, num contexto excecionalmente favorável e sustentado por fatores extraordinários que, como tenho vindo a alertar, estão a esgotar-se. Entre esses fatores contam-se, como já referido, a injeção maciça de fundos do PRR, o surto turístico pós-confinamento, a guerra na Ucrânia — que beneficiou Portugal pela sua perceção internacional como país seguro e distante do conflito, potenciando a atração de mais turistas e algum investimento — e a entrada descontrolada de imigrantes entre 2017 e 2024, período em que vigorou o Regime de Manifestação de Interesse. Uma parte significativa dessa imigração foi absorvida pela economia paralela; de outra forma, o aumento da população ativa teria gerado taxas de crescimento próximas dos 4% ao ano. Ainda assim, esse fenómeno gerou um efeito positivo no PIB oficial, sobretudo através do consumo, contribuindo para uma leitura excessivamente otimista do desempenho económico recente.
Concordo que os momentos de bonança são, em teoria, mais propícios à realização de reformas. Contudo, essas reformas não podem assentar em promessas irrealistas nem em diagnósticos frágeis. É necessário afirmá-lo com clareza: reformas estruturais exigem um conjunto integrado e coerente de medidas, capaz de enfrentar bloqueios profundos em múltiplas dimensões da economia e da sociedade, e que contemple explicitamente a calendarização, os mecanismos de implementação e uma avaliação robusta dos impactos económicos, sociais e institucionais esperados. A área laboral é apenas uma dessas dimensões.
Não é mesmo nada evidente que o anteprojeto de pacote laboral esteja assente num diagnóstico rigoroso e atualizado do atual mercado de trabalho, nem que a proliferação de mais de uma centena de propostas legislativas seja compatível com uma reforma eficaz e bem calibrada.
Do ponto de vista estritamente económico, o impacto de uma greve geral de um dia é limitado, ainda que não nulo. Uma parte da produção é recuperada nos dias subsequentes, enquanto outra simplesmente não se realiza, como sucede com feriados, interrupções logísticas ou choques transitórios. O custo económico imediato é, por isso, relativamente reduzido, mas não desprezível para um país com um nível de vida relativamente baixo no contexto europeu.
Incomparavelmente mais elevado é o custo acumulado de décadas de crescimento fraco da produtividade, salários estagnados, precariedade laboral e subaproveitamento sistemático do capital humano. Uma reforma laboral que gere revolta e desconfiança entre os trabalhadores dificilmente contribuirá para resolver o problema central da produtividade; pelo contrário, poderá agravá-lo, reforçando conflitos distributivos e desincentivos ao investimento em qualificações.
A greve geral deve, assim, ser interpretada sobretudo como um sinal político. Ela traduz uma fratura crescente entre as promessas de prosperidade futura e a experiência quotidiana de quem vive com rendimentos baixos, enfrenta custos elevados de habitação e depende de serviços públicos crescentemente pressionados. Tentar dissuadir a participação na greve através de promessas salariais longínquas é, volto a sublinhar, um apelo à fé em narrativas simplificadoras de que os cidadãos estão manifestamente cansados, porque não respondem aos problemas concretos do presente.
Por fim, o episódio da greve expôs uma fragilidade adicional do debate político nacional: a instabilidade das alianças parlamentares e a facilidade com que, em momentos críticos, convicções programáticas cedem lugar à conveniência tática. Esta volatilidade compromete a previsibilidade das políticas públicas e fragiliza ainda mais a confiança dos cidadãos nas instituições democráticas.
O recuo do líder do Chega no apoio ao pacote laboral, em matérias que lhe parecem ser mais impopulares, ilustra bem como o debate económico se tornou refém de cálculos políticos de curto prazo. É que o candidato a Primeiro-ministro é também candidato presidencial – um salto ‘quântico’ que analisei numa crónica anterior –, pelo que até às eleições presidenciais de 18 de janeiro não saberemos qual o efetivo grau de recuo do Chega no pacote laboral.
Nada disto é, na verdade, surpreendente. Quando as reformas não assentam num consenso social mínimo, nem são sustentadas por diagnósticos rigorosos e realistas da economia, tornam-se inevitavelmente frágeis e expostas à erosão política. Reformas construídas sobre promessas irrealistas, objetivos difusos ou narrativas excessivamente otimistas carecem de credibilidade técnica e de legitimidade social, ficando particularmente vulneráveis à contestação e à reversibilidade.
Na ausência de uma estratégia clara e coerente de aumento da produtividade — que articule mercado de trabalho, qualificações, investimento, inovação e qualidade institucional —, o espaço para uma discussão económica séria é rapidamente ocupado por dinâmicas de curto prazo. Nesse contexto, as reformas passam a ser moldadas menos pela evidência e mais pela perceção pública, menos pelo interesse estrutural do país e mais pela conveniência política imediata. A fé no mercado, tantas vezes invocada de forma abstrata, é então substituída pela fé nas sondagens, transformando o processo reformista num exercício reativo, errático e vulnerável a pressões populistas, em detrimento de políticas consistentes e duradouras.
Conclusão: Menos fé e mais economia, através de medidas exequíveis e consonantes
A lição final é inequívoca e convém dizê-lo sem rodeios: Fé e promessas não constroem uma economia sólida. Salários de padrão europeu, sustentados por um crescimento mais elevado e duradouro da produtividade e do PIB, não emergem de discursos inspiradores, de metas lançadas para o espaço mediático ou de exercícios de voluntarismo político. Resultam, isso sim, de políticas públicas coerentes, de investimento continuado em capital humano, inovação e capacidade produtiva, e de instituições fortes, previsíveis e inclusivas, onde a concertação social desempenha um papel central.
Tentar substituir a realidade económica por retórica ou por apelos à crença é uma estratégia perigosa. Não acelera o crescimento, não melhora salários e tem um efeito político corrosivo: aprofunda a descrença, alimenta o populismo e afasta o debate das soluções reais e difíceis que o país teima em adiar. Quando a política económica se aproxima do discurso motivacional, perde-se rigor e perde-se confiança.
Pedir aos trabalhadores que acreditem em salários mínimos de 1600 euros ou salários médios de 3000 euros sem explicar, com seriedade, como lá se chega, é equivalente a prometer prosperidade eterna sem indicar o caminho. A greve geral de 11 de dezembro não é apenas um dia de produção perdido; é o reflexo de uma frustração acumulada, de uma sociedade que reconhece quando as promessas não são sustentáveis e quando os discursos de confiança se transformam em ilusão. É, em última instância, um sinal de alerta claro: a paciência social não é infinita.
Pedir aos trabalhadores que acreditem em salários mínimos de 1600 euros ou salários médios de 3000 euros sem explicar, com seriedade, como lá se chega, é equivalente a prometer prosperidade eterna sem indicar o caminho. A greve geral de 11 de dezembro não é apenas um dia de produção perdido; é o reflexo de uma frustração acumulada, de uma sociedade que reconhece quando as promessas não são sustentáveis e quando os discursos de confiança se transformam em ilusão. É, em última instância, um sinal de alerta claro: a paciência social não é infinita.
O desafio que Portugal enfrenta é, afinal, simples de formular, embora difícil de executar: construir consensos sociais genuínos, implementar reformas estruturais credíveis e alinhar expectativas salariais com a produtividade e com a capacidade económica efetiva do país. A economia portuguesa não precisa de milagres nem de redenções súbitas; precisa de decisões difíceis, escolhas consistentes e políticas sustentadas em evidência.
Confundir fé com evidência é um erro com custos elevados. Desaponta trabalhadores, fragiliza a coesão social e atrasa o crescimento que todos afirmam desejar. Mais de uma centena de alterações ao Código do Trabalho ou promessas de salários “caídos do céu” não substituem planeamento estratégico, pragmatismo económico e negociação séria. A fé pode ter um lugar legítimo na esfera pessoal; na economia, o que conta são números, instituições e políticas coerentes, orientadas por uma ambição elevada, sim, mas indissociável do realismo.
Este episódio da greve geral e das promessas salariais para reduzir os seus efeitos, com base num anteprojeto de reforma laboral já de si pouco credível, parece apenas confirmar um padrão recente sobre o reformismo anunciado, mas inconsequente – “às vezes é preciso que algo mude [ou, pelo menos, que tenha essa aparência, acrescento] para que tudo fique, essencialmente, na mesma” (adaptação do romance O Leopardo, de Lampedusa). Ou seja, as elites aceitam mudanças aparentes ou controladas para preservar o essencial do poder e das hierarquias sociais, mudando a forma para preservar o seu conteúdo.

