Óscar Afonso, Jornal i online
A concentração de atividade económica, investimento e população em torno da capital é um fenómeno estrutural com repercussões profundas no desenvolvimento territorial do país
Tenho alertado variadas vezes para a urgência de contrariar a desertificação do interior do país, mas no litoral assistimos também a uma discrepância importante: a grande diferença de nível de vida entre a Área Metropolitana de Lisboa (AML), que envolve a capital política do país, e a Área Metropolitana do Porto (AMP), que lhe segue em população. A AMP é a segunda maior sub-região do país e o principal centro urbano da região Norte, que lidera a nível económico e político, sendo, por isso, o foco deste artigo.
Antes de prosseguir com a análise dos dados relevantes, lembro que, em 2021, a revisão das NUTS (sigla inglesa para Nomenclatura das Unidades Territoriais para Fins Estatísticos) desagregou a AML entre as NUTS de nível II “Grande Lisboa” (GL) e “Península de Setúbal” (PdS), que foi autonomizada para ser elegível no ciclo de fundos europeus 2021-2027 devido ao seu baixo nível de vida (o que não era possível fazendo parte da mesma unidade da capital, cujo nível de vida está bem acima da média europeia).
Já em 2024, também com vista à maximização de fundos recebidos, foi feita mais uma alteração da organização territorial, com a criação da NUTS II “Oeste e Vale do Tejo”, integrando áreas relativamente pobres que antes pertenciam às NUTS II do Centro e Alentejo, mas que estão também, em grande medida, na área de influência de Lisboa (em termos de mercado de trabalho, comércio e serviços especializados, com pessoas a comutarem diariamente de e para a capital, e empresas e cadeias de valor conectadas), sobretudo o Oeste e a Lezíria (no caso do Médio Tejo, essa integração funcional é mais limitada).
A alteração de 2021 obriga a agregações para obter valores para a AML na comparação com a AMP, mantida como NUTS de nível III dentro da região Norte (NUTS II), que continua a ser uma das mais pobres do país – logo após as duas novas NUTS II criadas desde 2021 –, com acesso a fundos da União Europeia (UE), que não têm chegado para compensar os elevados custos do centralismo, que abordo mais abaixo.
Essa comparação é pertinente porque tanto a AML como a AMP são entidades administrativas com funções de planeamento e coordenação, refletindo a sua área de influência económica (caracterizada por fluxos diários de trabalhadores, conexões empresariais e integração funcional do território, como referi).
Vejamos então os números.
Em 2023, a AML representava 28% da população média residente (com a GL a pesar 20% e a PdS 8%) e a AMP 17%, um peso pouco inferior ao da GL.
Em 2023, segundo dados do INE, o nível de vida medido pelo PIB per capita em paridade de poderes de compra (PPC) era de 40,7 mil euros na AML (48,5 mil na GL e apenas 20,7 mil na PdS), muito acima dos 29,2 mil na AMP e 30,7 mil na média do país. Em termos relativos, isto significa que a AML se situava em 132,5% da média nacional (158,0% na GL e 67,5% na PdS), superando largamente os 95,2% da AMP.
De acordo com dados comparáveis do Eurostat, em 2023 a AML atingia 106% da média de nível de vida da UE (127% na GL e 54% na PdS) e 77% na AMP, o que ajuda a enquadrar a disparidade nacional no contexto da UE. Nota: no caso da AML, os valores foram obtidos por agregação proporcional à população.
Considerando as NUTS III (sub-regiões) a nível nacional, a AMP tem apenas o sétimo nível de vida, atrás do Alentejo litoral (101% da UE, a refletir o porto e a refinaria de Sines), do Algarve e da Madeira (87% nos dois casos), do Baixo Alentejo (79%) e de Aveiro (78%).
Daqui retiram-se conclusões relevantes para o futuro do país.
Se as novas NUTS II criadas em 2021 e 2024 visaram maximizar a entrada de fundos da UE e a AMP não foi prejudicada diretamente, a verdade é que as mexidas têm concentrado ainda mais investimento, atividade e, consequentemente, população, em torno da capital, como decorre do já exposto, reforçando a desigualdade territorial mesmo entre áreas urbanas do litoral, pelo que deveria haver um reforço compensatório de investimento do Estado no resto do país. Se a AMP representa 17% da população, um nível de vida abaixo da média nacional significa inevitavelmente um empobrecimento global do país.
Em síntese, é difícil de compreender que, além do urgente reequilíbrio interior-litoral, o país ainda enfrente desequilíbrios flagrantes no próprio litoral, com persistência, sem razão aceitável, de diferenças acentuadas no nível de vida.
Os efeitos dos fundos europeus apenas adensam a desigualdade já criada pelo forte centralismo do país — que em 2024 tinha o terceiro menor peso da despesa pública de nível inferior à administração central da UE (15,4% face a 34,8% na média europeia ajustada) entre países comparáveis, como evidenciei noutro artigo de opinião —, concentrando recursos e poder em Lisboa de forma cada vez mais desmesurada e ostensiva, e alimentando um sentimento de desilusão e frustração que ajuda a explicar boa parte da tendência de voto recente.
De facto, o agravamento dos efeitos do centralismo é evidente no projeto Parque Cidades do Tejo e, sobretudo, no grande projeto do novo aeroporto de Lisboa (incluindo os projetos associados da terceira travessia do Tejo e das linhas de alta velocidade Porto-Lisboa e Lisboa-Madrid), apresentado como uma inevitabilidade sem que tenham sido consideradas ou debatidas alternativas para um desenvolvimento mais sustentável, equilibrado e coeso em termos ambientais, sociais, territoriais e intergeracionais.
A concentração de atividade económica, investimento e população em torno da capital é um fenómeno estrutural com repercussões profundas no desenvolvimento territorial do país. Lisboa concentra funções políticas, financeiras e administrativas, serviços especializados e infraestruturas de transporte e comunicação que reforçam a sua atratividade e absorvem recursos e oportunidades do resto do território, ampliando as desigualdades.
É com incompreensão e tristeza que vemos políticas centralistas a reforçarem o investimento em torno da capital, atraindo ainda mais população e erguendo o pretexto para novos investimentos — muitos ditados apenas pelos custos crescentes do congestionamento que o próprio centralismo gera, dos transportes à habitação. Consolida-se, assim, um ciclo virtuoso para a capital e vicioso para o restante território (incluindo a AMP) e para o país no seu conjunto — uma visão distorcida, por vezes egoísta, difícil de aceitar.
O efeito é notório no capital físico e humano. A concentração de investimento e de empregos qualificados em Lisboa leva a fluxos de migração interna, sobretudo de jovens e profissionais especializados, que se deslocam da periferia ou mesmo de outras regiões do país em direção à capital. Este movimento contribui para o aumento da densidade económica, da inovação e do poder de compra na AML, enquanto a AMP sofre uma perda relativa de massa crítica de talento e de capacidade de investimento, limitando o crescimento de setores inovadores e reduzindo oportunidades de emprego qualificado na sub-região.
Quando olhamos para a UE, o contraste é evidente, pois a grande maioria dos países comparáveis – em especial os mais desenvolvidos e com uma população semelhante ou superior a Portugal – tem níveis intermédios de administração territorial (por exemplo, as Autonomias em Espanha e os Länder na Alemanha), enquanto Portugal continua sem as regiões administrativas previstas na Constituição.
A criação de regiões administrativas com limites ao endividamento deve (pelo menos) ser colocada na agenda política após os dois próximos atos eleitorais, integrada numa reforma territorial mais ampla que elimine também o nível administrativo das freguesias (absorvido pelo nível municipal, com eventuais fusões), como tenho vindo a defender para nos aproximarmos dos países mais avançados da UE, com base num estudo da Faculdade de Economia do Porto (FEP). O desequilíbrio entre interior e litoral, e neste, entre Lisboa e Porto, evidencia a necessidade de políticas mais direcionadas que podem ser favorecidas em diferentes áreas pelo nível intermédio das regiões, permitindo que estas se tornem polos de atração de talento e investimento, em vez de periferias dependentes do centralismo de Lisboa.
Na discussão sobre a eventual criação das regiões administrativas, importa considerar os receios manifestados aquando do referendo de 1998 quanto aos custos de um novo nível administrativo; esses receios devem ser afastados no futuro mediante travões claros ao endividamento regional.
Isso obrigaria muito provavelmente ao fim das duas novas regiões NUTS II criadas artificialmente para captação de fundos da UE, mas que contribuem indiretamente, como referi, para ‘inclinar’ ainda mais o país em torno da capital – tal deverá fazer parte de uma estratégia mais ampla de redução da dependência dos fundos europeus, que começarão a reduzir-se significativamente a partir de 2027, exigindo reformas que preparem o país para se desenvolver sobretudo com base na geração endógena de recursos, como tenho vindo a alertar.
Além da melhor redistribuição de recursos públicos e maior eficiência na sua aplicação esperadas com a reforma territorial proposta – permitindo, no caso da AMP e do Porto, competir em maior pé de igualdade com Lisboa e outras cidades europeias de dimensão similar –, o desenvolvimento dos territórios exige ainda melhores políticas. Por exemplo, no que se refere à AMP, incentivos inteligentes à inovação tecnológica, políticas de investimento em setores estratégicos e a promoção de clusters empresariais podem elevar a produtividade e o nível de vida local. Paralelamente, é crucial reforçar a mobilidade intermunicipal e regional, garantindo transportes eficientes que conectem a AMP à sua periferia e reduzam desigualdades no acesso a emprego e serviços. Medidas de habitação acessível e estímulo ao empreendedorismo são igualmente fundamentais para reter talento e atrair novos investimentos.
Em última análise, os números apresentados evidenciam uma lição clara: não basta olhar apenas para o interior marginalizado. Portugal precisa de cidades e (sub)regiões equilibradas. A AMP, segunda maior sub-região em população, ocupa apenas a sétima posição em nível de vida, abaixo da média nacional, o que não só limita o desenvolvimento local como fragiliza economicamente a região Norte e o país como um todo. Só uma reforma profunda da administração territorial do Estado, que reequilibre recursos entre regiões, acompanhada de políticas públicas mais bem direcionadas e eficazes, poderá reduzir de forma efetiva as disparidades entre interior e litoral e, neste, entre Lisboa, o Porto e o restante litoral.