António João Maia, Jornal i online

Trata-se apenas de formas diferentes de organização e de vivência social, que podem ajudar a explicar o maior ou menor respeito pelos outros e pelas questões de interesse coletivo

A reflexão que trago hoje resulta da vivência pessoal que tive esta semana na Dinamarca, país que, como é sabido, surge quase todos os anos com as menores taxas de corrupção percebida no mundo, como mostram os rankings anualmente divulgados pela Transparência Internacional ou pelo Eurobarómetro.

Claro que uma semana de contacto com as pessoas e a observação de alguns traços dos seus modos de vida não são elementos suficientemente sólidos para aferir grandes conclusões sobre a razão de ser dessas perceções, e sobretudo porque possam ser sociedades efetivamente com menor presença da corrupção, até porque, pela sua natureza, estamos em presença de um problema tendencialmente oculto.

As ciências sociais em geral, e a antropologia em particular, dedicam-se ao estudo das circunstâncias que modelam as relações entre os humanos e o espaço que habitam, como se adaptam a esse espaço e criam modelos de organização social, económica, política e jurídica, e como edificam e partilham uma cultura comum que lhes permite comunicar e desenvolver laços de fraternidade.

Estas soluções, independentemente da configuração que tenham, apresentam sempre uma natureza frágil, na medida em que têm de ser permanentemente suportadas, validadas, aprofundadas e reformuladas por todos os indivíduos, em dinâmicas de maior ou menor cooperação e coesão social, mas nunca em soluções acabadas ou perfeitas – o que é uma sociedade ou uma cultura perfeita?, ou, indo mais longe, o que é um indivíduo perfeito, sobretudo em termos sociais e culturais?

Nestas dinâmicas, que se se reforçam e remodelam em permanência, em resultado do pulsar próprio que as caracteriza, os indivíduos e as suas posturas são elementos centrais. Eles, nomeadamente em resultado dos denominados processos de socialização e aculturação, e também das suas expectativas e circunstâncias de vida, apresentam-se e adotam comportamentos mais ou menos conformados com as regras, independentemente de estas serem escritas ou apenas hábitos culturais e sociais.

E, deste ponto de vista, o mais natural em qualquer sociedade é que alguns indivíduos, isolados ou organizados em grupos mais ou menos extensos, movidos por fatores diversos, nomeadamente pelos seus interesses, possam adotar opções de vida que se afastem ou contrariem, por vezes de forma muito divergente, a regularidade das normas e das expectativas sociais.

Quando estas divergências comportamentais assumem uma dinâmica própria e se tornam numa espécie de tendência, podemos estar perante processos anómicos de mudança da ordem social e dos valores culturais, no sentido indicado por autores como Émile Durkheim e Robert Merton

E será neste enquadramento que falamos em processos desviantes de fraude, e, sobretudo na gestão do Estado e das suas estruturas, de corrupção.

Deste ponto de vista, pode assumir-se que não existem sociedades imunes a estes problemas. Por muitos e bons controlos que existam, nomeadamente quanto à prevenção e controlo da fraude e da corrupção nas sociedades e nas organizações, a possibilidade da existência de situações desviantes nunca é nula. A possibilidade de termos a presença de algum indivíduo menos alinhado com os propósitos da organização está – e sempre deverá estar – sobre a mesa. Os indivíduos, as organizações e as próprias sociedades são melhoráveis!

Foi deste ponto de vista que observei as pessoas com que me ia cruzando ao longo dos dias em Copenhaga, no sentido de perceber que diferenças apresentavam nos seus comportamentos que pudessem fornecer algumas pistas para explicar os baixos índices da presença da corrupção que ali são percebidos (no pressuposto de que à baixa perceção corresponde também a uma baixa dimensão real do problema).

E de facto existem algumas diferenças na atitude e postura das pessoas relativamente ao que se verifica nos povos do sul da Europa. Desde logo, os sinais de calma e tranquilidade na forma como falam uns com os outros, por exemplo no aeroporto, nas estações de comboio e metro e nas próprias viagens nos transportes, há uma permanente tranquilidade, traduzida por um falar disciplinado e baixa sonoridade. A pronta disponibilidade para ajudar sempre que são abordados por um estrangeiro é um outro sinal relevante, e sempre acompanhado com um sorriso.

Por outro lado, parecem existir sinais de uma confiança e segurança fortes, traduzidas por exemplo pelo facto de deixarem as bicicletas, com que diariamente se deslocam na cidade, parqueadas nos locais próprios, sem qualquer corrente ou cadeado a prendê-las, com a certeza de que no final do dia, quando regressarem, elas ali estarão sem que nada lhes tenha acontecido e sem que ninguém as tenha utilizado.

Um outro elemento que me pareceu interessante, que provavelmente se explica pelo índice de desenvolvimento económico, traduz-se na inexistência de mendigos, incluindo na estação central de comboios, nem de sinais da existência de pessoas sem-abrigo. Importa referir ainda a quase inexistência de lixo espalhado pelas ruas, mesmo nos subúrbios.

Com estes elementos não pretendo defender, nem afirmar, nem sequer sugerir, que os cidadãos do norte da Europa, nomeadamente os dinamarqueses, são melhores do que os de outras latitudes. Nada disso. Trata-se apenas de formas diferentes de organização e de vivência social, que podem ajudar a explicar o maior ou menor respeito pelos outros e pelas questões de interesse coletivo.

Considero que as atitudes que testemunhei evidenciam acima de tudo fortes sinais de consideração e respeito pelo outro – se queres ser respeitado, respeita – e que porventura eles podem explicar, pelo menos em parte, a questão dos baixos valores de perceção da corrupção.

Porém não se julgue que não há problemas de corrupção na Dinamarca. Após uma rápida pesquisa na net, verifiquei por exemplo que, em março passado, um relatório de avaliação do GRECO recomendava às autoridades dinamarquesas a necessidade de adotar medidas de reforço de prevenção e controlo da corrupção relativamente ao exercício das atividades dos membros do parlamento, dos juízes e procuradores, e também no governo central. Identifiquei também uma notícia de 2024, com várias referências a práticas de fraude, branqueamento de capitais e fuga ao fisco, envolvendo advogados, empresários e políticos.

Não há pessoas, nem organizações, nem sociedades perfeitas!

Há, sim, pessoas, organizações e sociedades melhoráveis!