Óscar Afonso, Jornal i online

Portugal teve mais esta oportunidade de usar fundos europeus para reconfigurar o modelo económico, mas está em risco de a desperdiçar por motivos conhecidos: excessiva canalização de recursos para o Estado em detrimento do setor privado; distribuição territorial que perpetua o centralismo em Lisboa; e uma burocracia excessiva.

Portugal encontra-se num momento decisivo da execução do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), que deveria servir para recuperar e robustecer o país a crise pandémica, como o nome indica.

O nosso PIB já há muito recuperou da contração provocada pela pandemia (devido ao distanciamento social e confinamentos, nomeadamente), mas há ainda bastante dinheiro por gastar, até porque a execução está muito atrasada, como aqui analiso. Por isso, no que se refere à estabilização da atividade económica, uma das funções do Estado e associada à componente ‘Recuperação’ do programa, é óbvio que o PRR já perdeu claramente o timing para tal, pelo menos em Portugal, tendo antes acentuado a fase alta do ciclo económico e potencialmente contribuído para uma inflação mais elevada.

Mias importante, com uma dotação total de 22,2 mil milhões de euros, o PRR representa, pelo menos em teoria, uma oportunidade única para impulsionar reformas estruturais e investimentos estratégicos – a componente da ‘Resiliência’ – que serão certamente relevantes, não disputo isso. Contudo, é legitimo questionar se foram feitas as melhores escolhas para transformar e dinamizar a economia, tornando-a mais resiliente, o que não parece ser o caso, pelo menos olhando para as projeções do Ageing Report de 2024 da Comissão Europeia, que apontam para um retorno do nosso crescimento potencial anual para pouco mais de 1% após 2026, igual à tendência desde o início do milénio e abaixo da União Europeia (UE). Só com reformas estruturais decisivas podemos almejar um potencial de crescimento superior.

Sublinho que o nosso crescimento recente um pouco acima da média da UE – meta pouco ambiciosa, porque limitada pela estagnação das maiores economias europeias –, tão celebrado pelos últimos governos (do PS e da AD) como se fosse um resultado da sua governação, deve-se antes ao efeito do PRR e ao surto de turismo pós-pandemia, acentuado pela guerra na Ucrânia devido à imagem de país bonito e longe do conflito que, pelo contrário, tem penalizado os países do centro e leste da UE, muito mais afetados pelo fim do gás barato da Rússia. Se o turismo já tem vindo a abrandar – sendo crucial diversificar a economia para setores de maior produtividade e valor acrescentado, com intensidade em conhecimento e tecnologia –, a maior parte do dinheiro do PRR ainda vai entrar na economia, como evidenciarei abaixo.

O ‘pecado original’ do PRR na componente de resiliência foi a proporção de cerca de 2/3 da dotação para o Estado – na prática, substituindo investimento público nacional – e apenas 1/3 para o setor privado, o principal afetado pela pandemia, significando uma menor aposta no crescimento económico de longo prazo, até porque a principal necessidade do setor público é uma melhor gestão. As consequências deste ‘pecado original’ vão-se sentir a partir de 2027, desde logo no investimento público. Precisamos de uma reforma profunda do Estado que reduza o peso da despesa corrente, permitindo margem orçamental para acomodar mais investimento público reprodutivo e baixar a carga fiscal em IRC e IRS para ganhar competitividade, como venho a defender. Essa reforma é tão mais urgente quanto a despesa corrente permanente subiu com o aumento de salários em vários setores da função pública (que foi necessário para pacificar setores essenciais como a educação e segurança), mas também por alguns investimentos do PRR, que exigem despesa corrente de manutenção e funcionamento, como em devido tempo alertou o Conselho de Finanças Públicas. Ao mesmo tempo, passados os efeitos conjunturais do PRR, não parecem sobrar ganhos estruturais na economia que gerem sustentadamente mais receitas fiscais do que antes, como referi acima a respeito dos dados do Ageing Report de 2024 sobre o nosso crescimento potencial.

Vejamos agora os dados da execução do PRR. Iniciada sensivelmente a meio de 2021, a execução do programa já vai em quase quatro anos, ou seja, cerca de 73% dos cinco anos e meio até à data limite de 31-12-26. Os dados oficiais atualizados a 30 de abril (site ‘Recuperar Portugal’) mostram que 51% do dinheiro já foi recebido da UE, refletindo 34% de cumprimento das metas e marcos estipulados, dos quais dependem os desembolsos, pelo que as próximas tranches exigirão uma aceleração a este nível por parte do próximo governo, de modo a cumprir atempadamente esta componente condicional do PPR.

Quanto à implementação financeira, 100% da dotação foi contratada a beneficiários diretos (finais) e indiretos – entidades públicas, que farão chegar o dinheiro aos destinatários finais após o processo de tramitação, que envolve burocracia –, e 96% foi aprovada, mas apenas 42% foi transferida e somente 34% paga, sendo este último indicador o mais relevante pois traduz a fase final da execução.

Em suma, com cerca de 27% do tempo total de execução até à data limite, falta pagar 66% aos destinatários, que se deverá em parte ao excesso de burocracia e falta de meios para tramitar processos, mas também porque falta concluir obra, sendo a falta de recursos humanos para avançar e concluir os projetos contratados uma queixa persistente de muitas empresas, sobretudo na área da construção, pelo que a mão-de-obra imigrante poderá ser decisiva para acabar de executar o PRR.

Sobre o prazo de execução dos programas nacionais ao abrigo do Mecanismo de Recuperação e Resiliência (no âmbito do qual se enquadra o nosso PRR), ainda que a Comissão Europeia tenha sido bastante taxativa quanto à data limite de 31 de dezembro de 2026, correndo Portugal um risco efetivo de perda de fundos se não conseguir acelerar a execução de forma decisiva no tempo que falta, a verdade é que há outros países com atrasos relevantes e é possível que venha a haver uma extensão de prazos. A possibilidade de extensão não pode ser admitida oficialmente para não gerar incentivos perversos, mas o Comissário Europeu José Manuel Fernandes já revelou que basta uma alteração de dois regulamentos para que tal aconteça e até nem será precisa uma aprovação por unanimidade.

Contudo, é melhor o governo não contar muito com isso, pois a concentração da execução até 2026 poderá ser preferida pela Comissão Europeia para mitigar o impacto da guerra tarifária de Trump na economia da UE. Faço notar que as principais revisões em baixa das previsões de crescimento do FMI para a UE, já a refletir o impacto das tarifas, concentram-se precisamente em 2025 e 2026 no cenário base, sendo o cenário adverso também mais penalizador nesses anos.

É justo salientar que a inflação elevou os custos dos projetos, acentuando os atrasos ou até impossibilitando alguns projetos. Tal justificou a reprogramação efetuada pelo Ministro da Coesão este ano, mas com a indicação de que os investimentos tirados do PRR serão assegurados pelo Orçamento de Estado. Veremos se assim será, pois uma deterioração da conjuntura poderá levar a novos adiamentos.

Por último abordo a distribuição territorial dos fundos do PRR. Ao contrário dos programas dos fundos de coesão, focados sobretudo nas regiões menos desenvolvidas, o PRR tem uma filosofia diferente, cabendo a cada país a seleção dos investimentos dentro de critérios temáticos (transições digital e climática). Tal levou, em Portugal, a uma distribuição que reproduz o poder (político e económico) dos territórios e a sua capacidade de reivindicação, não contribuindo para reduzir as assimetrias. Com 96% de aprovação dos projetos a 30 de abril, como referido, os dados das percentagens por distrito do montante aprovado face ao total aprovado do PRR são bastante reveladores. Todos os distritos do interior de Portugal continental (sem acesso a mar) têm, cada um, apenas 1% do total aprovado do PRR, com exceção de Viseu, com 2%. O distrito de Lisboa tem a maior fatia (22%), seguindo-se o Porto (14%), Braga (6%), Aveiro (5%), Setúbal (4%), Coimbra (4%), Faro (3%) e Leiria (3%), cabendo a cada região autónoma (Madeira e Açores) 4%.

Concluo que o atraso do PRR é o espelho do atraso do país. Portugal teve mais esta oportunidade histórica de usar fundos europeus para reconfigurar o seu modelo económico e elevar o potencial da economia – que deve ir além do turismo –, mas está em risco de a desperdiçar, mais uma vez, por motivos conhecidos: uma excessiva canalização de recursos para o Estado em detrimento do setor privado, uma distribuição territorial que perpetua o centralismo em Lisboa e a marginalização do interior, e uma burocracia excessiva que poderá contribuir para a perda de fundos se não terminarmos os investimentos a tempo.

A capacidade de levar a cabo reformas essenciais para recuperarmos do nosso atraso depende da qualidade das políticas – e dos políticos que as propõe e levam a cabo –, que ao longo do tempo vai moldando a qualidade das instituições, essencial ao crescimento económico de longo prazo. A nossa dependência persistente e gritante de fundos europeus, após quatro décadas na UE, mais não é do que um reflexo do nosso atraso, pela incapacidade de reformar dos sucessivos governos, repetindo outras dependências financeiras do passado, como o ouro do Brasil. Mais do que ‘receber o peixe’ no prato, Portugal precisa de ‘aprender a pescar’, usando uma analogia adequada a um país marítimo como o nosso.