José António Moreira, OBEGEF

A Autoridade Tributária adote um esquema flexível de retenção do IRS, que contemple a possibilidade de reter mais imposto, do que o devido, aos contribuintes que, livremente, manifestem vontade nesse sentido.

O João, escuteiro lobito, recém chegado ao movimento, ouvia atentamente o monitor, que apresentava os mandamentos da lei escuteira. “O escuteiro é prestável”, disse com voz forte. E ilustrou: “Se o escuteiro vê uma velhinha em dificuldade para atravessar uma rua, ele vai ajudá-la e leva-a ao outro lado da mesma.

O mandamento ficou gravado no coração do jovem escuteiro. Dias depois, no seu caminho para a escola, vê uma velhinha parada na beira da rua, um pouco alheada do movimento. O João não pensou duas vezes. Estava ao seu alcance efetuar uma boa ação. Aproximou-se da senhora, pegou-lhe na mão e iniciou o movimento de atravessar a rua. A senhora, surpresa, resistiu. E o João puxou com mais força, olhos postos no controlo do trânsito. Arrastou a senhora, autenticamente, até ao outro lado. Recebeu como recompensa um puxão de orelhas. A velhinha não tinha intenção de atravessar a rua.

Esta história, ficcional, é por vezes usada para ilustrar que nem sempre as melhores intenções são apreciadas por aqueles a quem, supostamente, elas se destinam a beneficiar.

Desde o início deste mês de abril, quando abriu o período para a submissão da declaração de rendimentos de 2024 – vulgo declaração de IRS –, são recorrentes na comunicação social as queixas de concidadãos contribuintes sobre o facto de receberem este ano um menor reembolso de IRS ou, no limite, terem de efetuar algum pagamento para acerto de imposto.

Sinto-me o escuteiro da história e esses concidadãos são as velhinhas que eu me propus ajudar. Ao longo dos anos, assumindo estar a fazer uma boa ação, fui-me insurgindo, através dos escritos publicados, contra o excesso de retenção de IRS por parte dos sucessivos governos, no que constituía uma forma de manipulação do défice orçamental e um abuso para com os contribuintes. Em novembro de 2022, por exemplo, sob o título “Criatividade contabilística via retenção na fonte de IRS”, crónica publicada no Expresso, escrevi que “Num passado não muito distante, o excesso de retenção de imposto era remunerado pelo Estado, como reconhecimento de que é uma forma de financiamento dos gastos públicos e, por isso, tal como a dívida pública formal, deveria ser remunerada. Ninguém se indignou que essa remuneração tivesse desaparecido, nem que o Governo, anualmente, continuasse a reter imposto em excesso, sem o consentimento de cada contribuinte.

Estava enganado quanto aos interesses desses concidadãos. A iliteracia financeira e a incapacidade de muitas famílias para, autonomamente, efetuarem poupança a partir do rendimento mensal auferido poderão explicar, metaforicamente, o não desejarem atravessar a rua. Em tal contexto, porque as lacunas de formação e de comportamento referidas não desaparecem de um momento para o outro; mas também porque não se pode constranger o desejo dos contribuintes que desejam atravessar a rua, talvez seja altura de pugnar para que o Estado, através da Autoridade Tributária, adote um esquema flexível de retenção do IRS, que contemple a possibilidade de reter mais imposto, do que o devido, aos contribuintes que, livremente, manifestem vontade nesse sentido.