Óscar Afonso, Dinheiro Vivo

Nasci na Terra de Miranda, no ventre do planalto mirandês, onde as arribas do Douro e demais montanhas se erguem como sentinelas, guardiãs de uma terra onde a imensidão do céu se encontra com a profundidade da alma. Este pedaço de Portugal, escondido nos confins do mapa, pode parecer irrelevante aos olhos de quem nunca o pisou, de quem nunca ouviu o vento gelado rasgar as manhãs de inverno ou sentiu o calor intenso do verão que faz as pedras escaldarem. Mas, para mim, para nós que aqui nascemos, esta é a verdadeira pátria. É uma terra que habitamos, que habita em nós, que nos define e que nos dá o mais valioso: o sentido de pertença, a nossa língua, a nossa alma.

Cresci em Sendim, uma vila do concelho de Miranda do Douro, onde as pedras parecem guardar as vozes de quem ali viveu, onde o sendinês (uma versão do mirandês) ecoa como uma prece, uma língua que vai desaparecendo, mas que teima em resistir. O sendinês/mirandês é mais do que palavras. É a expressão de uma história de séculos, contada nas longas noites frias de inverno à volta da lareira e nas noites quentes de verão, nas ruas e praças. Cada palavra era um pedaço de nós, um fragmento da nossa memória. E hoje, sinto que, com cada palavra que se perde, é também uma parte de quem sou que se vai desvanecendo, como uma fogueira que se apaga lentamente.

A Terra de Miranda, com as suas paisagens vastas e o seu céu sem fim, é, para muitos, um lugar de liberdade. Mas esta liberdade é uma miragem. Aqui, onde o horizonte é infinito, os nossos sonhos esbarram nas fronteiras invisíveis do esquecimento, nas barreiras que nos afastam do progresso, das oportunidades, do futuro que nunca chega. Os habitantes sentem-se prisioneiros de uma cela invisível, onde o que é belo também aprisiona, onde cada jovem que parte deixa uma ferida aberta, uma nova ausência que se enraíza no coração da terra.

Sou filho dessa terra que me deu tudo – as memórias, a língua, o orgulho de ser mirandês –, mas que também me ensinou a dor de partir, de deixar para trás o lugar onde nasci e onde aprendi o valor da tradição, da família, do sangue. Parti como tantos outros, levado pela necessidade, pela ausência de futuro, pelo silêncio que esmaga os sonhos. E a cada quilómetro que me afasta da minha terra, carrego um peso, uma saudade incurável, um pedaço da minha alma que ficou para trás.

Mas a Terra de Miranda não morre apenas porque os jovens partem. Ela morre porque foi abandonada por quem deveria cuidar dela, por quem a vê de longe, nas luzes das grandes cidades, mas nunca lhe toca, nunca sente a sua dor. Décadas de centralismo, de políticas cegas e distantes, levaram tudo o que esta terra tinha para dar, deixando-nos esmagados, com as migalhas, com uma sensação de injustiça que é tão profunda quanto as suas arribas e montanhas. As barragens, símbolos de progresso para alguns, são, para os mirandeses, cicatrizes profundas. As águas e o património da região são sugados, transformados em fortunas para outros, sem que nada seja devolvido. A cada barragem construída, vai-se mais um pedaço do território, uma memória submersa, uma riqueza roubada. E, enquanto isso, a terra vai definhando, os jovens partem, a língua morre. A identidade local vai sendo apagada, pouco a pouco, sem que nada seja feito.

Cresci a sentir o peso deste esquecimento, a ver a minha terra ser tratada como uma curiosidade, como um pedaço de museu, um lugar bonito de onde outros tiram riqueza, mas onde ninguém investe, onde ninguém se preocupa com as pessoas que ali vivem. A Terra de Miranda é como uma mãe que nos ama, mas que não nos pode dar o que precisamos. E, por isso, partimos. Deixamos para trás a terra que nos deu vida, a língua que nos ensinou a falar, as tradições que nos moldaram. E, ao partirmos, levamos connosco a dor de saber que estamos a deixar um lugar que nos é mais do que querido, que é uma parte de quem somos.

E o que resta para quem fica? Resta o silêncio. Um silêncio profundo, vazio, que ecoa nas ruas desertas, nas casas vazias, nas palavras não ditas em mirandês. O que resta é um vazio que consome a alma, uma tristeza que é quase uma sombra a pairar sobre cada recanto desta terra. Esta é a verdadeira tragédia da Terra de Miranda: uma riqueza que não nos pertence, uma língua que morre, uma juventude que parte e que, provavelmente, nunca mais volta.

E, no entanto, esta terra é rica. Rica em história, rica em recursos, rica em tudo o que deveria ser suficiente para nos sustentar, para nos dar o que precisamos. Mas essa riqueza é levada para longe. A carne de vaca mirandesa, o vinho das encostas do Douro, a energia das barragens – tudo isso enriquece outros, enquanto a população local fica cada vez mais pobre, mais esquecida. Ficam apenas as promessas vazias, as políticas que nunca se concretizam e a sensação de invisibilidade para o resto do país.

Sinto que, a cada dia que passa, a Terra de Miranda vai morrendo um pouco mais. A cada jovem que parte, a cada palavra de mirandês que se perde, a cada promessa quebrada, vamos ficando mais vazios, mais despojados da nossa identidade. E o que mais dói é a sensação de impotência, o saber que se está a perder mais do que uma língua, mais do que uma cultura. Está-se a perder a própria essência, aquilo que torna esta comunidade única.

A Terra de Miranda precisa de mais do que promessas. Precisa de ações concretas, de políticas que tragam vida a este planalto, que devolvam o que lhe é devido, que permitam aos jovens ver um futuro aqui, em vez de uma necessidade de partida. Precisa de uma reforma profunda, de um grito de justiça, de uma nova forma de olhar para o interior, não como uma paisagem para turistas, mas como um lugar de vida, de cultura, de futuro.

O tempo de agir já vai tarde. O país não pode mais ignorar o que se desmorona em silêncio. Não podemos permitir que o centralismo mate o interior, que continue a desertificação lenta de territórios inteiros onde há ainda uma réstia de chama de uma cultura viva, uma língua, um povo que resiste. Precisamos de uma nova direção, de uma mudança estrutural e decisiva que traga vida ao que resta e proteja o que ainda subsiste no interior. As terras esquecidas de Portugal não podem ser deixadas para trás, e cada dia que passa sem ação é uma nova cicatriz na alma do país.

Chegou a hora das políticas públicas reconhecerem que a vida de uma nação vai muito além da sua capital, que o desenvolvimento, a dignidade e a esperança devem pulsar em cada aldeia, em cada vila e em cada cidade. É urgente que a alocação de recursos reflita a importância da proximidade, porque é a nível local, junto das pessoas, que as soluções se tornam reais. O interior precisa de autonomia, de investimento e de uma voz, para que possa reerguer-se e se valorizar com a mesma intensidade que o litoral.

Portugal é, neste momento, uma das nações mais centralizadas da União Europeia, com um peso irrisório da despesa pública local e regional no total da despesa pública. As decisões tomadas em Lisboa parecem cada vez mais alheias à realidade dos que vivem longe dos grandes centros urbanos, dos que ainda teimam em fazer do interior a sua casa. Esta falta de investimento no interior não é apenas um desrespeito pela diversidade cultural e histórica do país, é um erro estratégico que ameaça o futuro do todo nacional. A desertificação das nossas aldeias e o abandono das tradições não podem continuar a ser apenas números em relatórios. São pedaços de Portugal que se apagam, são vozes que se calam, são sonhos que nunca se realizarão.

E das duas uma: ou continuamos a centralizar o poder e os recursos, condenando o interior ao esquecimento, ou tomamos o caminho da verdadeira justiça territorial. Esta escolha não é apenas uma questão administrativa, é uma decisão de vida ou morte para as nossas comunidades, para o nosso património, para a nossa língua e a nossa cultura.

O futuro de Portugal deve ser construído em torno de um país inteiro, onde cada região, cada aldeia, vila e cidade tem um papel a desempenhar e um valor inestimável a preservar. Precisamos de políticas que reconheçam isso, que protejam e invistam no que ainda resta, que incentivem a autonomia regional e a criação de uma economia forte e sustentável no interior.