Óscar Afonso, Dinheiro Vivo

Começo este artigo por endereçar os sinceros parabéns a Mário Draghi pelo extenso relatório que produziu, encomendado pela Comissão Europeia, onde acerta nas principais falhas de competitividade da União Europeia (UE) e aponta caminhos para a sua resolução, que aqui discuto de forma crítica. 

O relatório sobre o futuro da competitividade europeia, com mais de 400 páginas no conjunto das suas duas partes, denota imenso trabalho e articulação com múltiplas entidades, capitalizando a já longa experiência de Draghi enquanto economista reputado em cargos da maior importância, com realce para a presidência do BCE, durante a qual foi o principal responsável for ‘salvar’ o projeto do euro – após afirmar que tudo faria nesse sentido, o que acabou por se tornar numa profecia autossatisfazente ao gerar a confiança necessária nos mercados através de medidas decisivas de política monetária. 

Contudo, lamento não poder acompanhar totalmente, em termos de substância, novidade e realismo, os muitos elogios que tem recebido o relatório. De facto, considero que não é nenhuma panaceia e apenas nos relembra de falhas e soluções que já conhecíamos, com dados atualizados, apresentando essa informação de forma sistematizada e propondo colmatar os défices de competitividade da UE face aos EUA e China em domínios chave com mais investimento, incluindo através da emissão de dívida comum, mas que dificilmente – ainda mais do que no passado – será conseguido, como explicarei mais abaixo. 

O relatório propõe três áreas principais de ação: 

(i) Eliminar o défice de inovação face aos EUA e China, promovendo um ecossistema de inovação mais dinâmico e reduzindo barreiras regulatórias que impedem as startups de crescerem na Europa; 

(ii) Um plano conjunto de descarbonização e competitividade para baixar os preços de energia e acelerar a transição para fontes de energia limpas, a par com a proteção das indústrias europeias de tecnologias verdes contra a concorrência desleal, especialmente da China; 

(iii) O reforço da segurança e redução de dependências, criando cadeias de abastecimento de matérias-primas e tecnologias críticas mais seguras e ampliando a capacidade industrial e de defesa da UE. 

Para tal, o relatório estima que será necessário um investimento adicional anual mínimo, público e privado, “de 750 a 800 mil milhões de euros”, o correspondente a 4,4% a 4,7% do PIB da UE em 2023, salientando ainda que esse intervalo compara com um valor de 1% a 2% do PIB no Plano Marshall, que financiou a reconstrução europeia após a 2ª Grande Guerra, o que, desde logo, sugere algum grau de irrealismo. O investimento mais alto reforçaria o seu peso no PIB da UE de 22% para 27%, revertendo a trajetória descendente das últimas décadas, com origem sobretudo nas grandes economias europeias. 

O principal contributo do relatório, quanto a mim, é dizer ‘olhos nos olhos’ aos decisores da UE, com conhecimento dos cidadãos europeus, que estamos em acentuado declínio económico e que, no fundo, a ‘bela rainha UE’, com todas as suas virtudes – valores humanistas e progressos no desenvolvimento sustentável –, desfila já literalmente ‘despida’ na cada vez mais complexa ‘passadeira’ geopolítica e comercial global, arriscando tornar-se irrelevante e mesmo indigente, sem qualquer réstia de brilho, sem uma mudança clara de políticas, pois não há valores que resistam se ‘não houver comida na mesa’. 

O problema é que, no atual contexto será cada vez mais difícil, senão impossível, a UE conseguir angariar os montantes de investimento propostos e atuar no sentido estratégico que Draghi propõe, pois para além da falta de vontade política – que já se verifica há muito tempo – para implementar soluções, estamos cada vez mais perante uma situação de incapacidade política para as tomar se não alterarmos o contexto. Aponto, a seguir, vários aspetos que me levam a considerar o relatório irrealista: 

  • Em primeiro lugar, porque as falhas e as soluções são, na sua generalidade, já conhecidas há bastante tempo e, entretanto, não foram alcançados progressos significativos, em parte por culpa das deficiências dos mecanismos de decisão numa Europa a 27 e da falta de solidariedade, não se conseguindo ultrapassar muitas vezes os egoísmos nacionais. Veja-se, por exemplo, o caso do Mercado Único de Capitais (MUC), cuja conclusão tem emperrado, sobretudo, pela falta de acordo num mecanismo único de garantia de depósitos na UE, pois os países mais ricos do Norte não querem financiar ‘corridas aos depósitos’ após eventuais falências bancárias em países do Sul, quando com o mecanismo implementado não há incentivo para tal, sendo essa a vantagem do mesmo. Se a nova comissária portuguesa com este pelouro conseguir avanços neste aspeto, já seria bom, mas terá ainda de convencer os políticos que a fusão de bancos é um pressuposto do MUC – a reação negativa do chanceler alemão à compra do banco alemão Commerzbank pelo italiano Unicredit diz muito das dificuldades que o MUC ainda enfrenta –, no qual o relatório Draghi deposita grande esperança para alavancar o investimento privado na UE. De um modo geral, sem uma alteração dos mecanismos de decisão da UE, pelo menos nas áreas económicas, duvido muito que seja possível implementar soluções já conhecidas e sucessivamente adiadas. 
  • Em segundo lugar, porque a dimensão proposta do investimento adicional necessário, muito dele público, ultrapassa largamente a do Plano Marshall – sendo que este foi financiado pelos EUA, convém não esquecer – e nunca foi possível ir além da contribuição de 1% do PNB dos estados-membros no Orçamento anual da União, pelo que não será no atual difícil contexto político da Alemanha e França que tal sucederá. Assim, e dada a incapacidade demonstrada pela União de gerar novas receitas próprias relevantes, a emissão de dívida comum para financiar o novo investimento proposto – sendo que muito dele, em particular na área da defesa, embora necessário, pouco reforça a produtividade das empresas e as receitas dos estados – apenas significa que haverá menos fundos de coesão para distribuir no futuro, em particular para os países que já receberam mais no passado, como Portugal, pois terão prioridade os novos entrantes previstos nos próximos anos, incluindo a Ucrânia, bem como as novas áreas prioritárias. 
  • Em terceiro lugar, porque no investimento proposto, pelo que percebo – se estiver enganado, peço que me corrijam –, não está incluída a reconstrução da Ucrânia após o desejado fim da guerra. A não ser que haja uma participação internacional relevante de países extra-UE nessa reconstrução, os fundos de coesão da UE serão uma migalha face aos desafios da Ucrânia, exceto se forem todos aí alocados – o que não é politicamente possível, porque a arquitetura da União está baseada nessas ajudas às regiões menos desenvolvidas, funcionando ainda, mais recentemente, como arma de dissuasão importante face a posições dissonantes de alguns países com governos mais extremistas, pela ameaça de suspensão desses fundos. 
  • Em quarto lugar, de forma relacionada, caso a guerra na Ucrânia não termine brevemente, a economia da UE e o seu orçamento serão ainda mais penalizados e os custos de reconstrução da Ucrânia serão superiores, reduzindo a margem orçamental da União para apoiar esse país – que corre o risco do seu território encolher ainda mais com o prolongar da guerra e a redução dos apoios para que continue, como se vê no forte corte de verba associada no orçamento alemão –, além das políticas europeias no seu conjunto. A solução para o fim da guerra na Ucrânia deverá, por isso, ter um envolvimento forte e decisivo das instâncias europeias qualquer que seja o desfecho das eleições norte-americanas, pois é todo o futuro da União que está em jogo. Sem o fim da guerra, não é possível planear e priorizar investimentos de forma adequada na UE, mesmo os relativos à defesa, que não podem ser relegados para segundo plano num cenário de paz sob pena de voltarmos a ter novas guerras no espaço europeu pela falta desse elemento dissuasor, pois não há economia sem segurança, como nos tem ensinado o conflito na Ucrânia.  

Em suma, há importantes omissões no relatório Draghi, que apenas nos mostra que a UE está à beira da irrelevância económica se não adotar soluções já conhecidas (de um modo geral) até agora não implementadas, o que comporta angariar novo investimento que é mais do dobro do que foi necessário para reconstruir a Europa no pós-guerra, agora a cargo dos europeus e não dos EUA (Plano Marshall). Se isso não bastasse, faltou explicar que esse novo investimento exige elevar, a prazo, as contribuições para o Orçamento da UE e não há condições políticas para tal num futuro previsível – dada a difícil situação política na Alemanha e na França em particular –, caso contrário a nova dívida gerada será paga à custa de fundos de coesão futuros e menos verba para as novas áreas prioritárias da União. A probabilidade das soluções e investimentos preconizados no relatório ocorrerem será também muito baixa sem uma remoção dos principais bloqueios no processo decisório da UE a 27 e, no futuro, com ainda mais países. 

Também faltou dizer que, se a UE não influenciar uma paz rápida na Ucrânia – futuro estado-membro, conforme ficou acordado – e conseguir contributos extra-UE relevantes para a sua reconstrução, os requisitos de investimento europeu serão ainda maiores do que os previstos no relatório Draghi e a capacidade de financiamento será menor pela perda económica e orçamental agravada da UE num cenário de prolongamento da guerra, significando que os apoios e políticas terão de ser reduzidos em consonância para todos os estados-membros atuais e futuros, incluindo a própria Ucrânia. Esta equação tem de ser apresentada pelas autoridades da UE à Ucrânia na procura de soluções de paz efetivas e realistas, até porque é parte interessada enquanto futuro estado-membro e depende dos demais estados-membros, cujo futuro está também em risco com o prolongamento da guerra. Acresce que os fenómenos populistas, incluindo na Alemanha e França, tenderão a agravar-se ainda mais com o arrastar da guerra e a bloquear decisões, constituindo mais um argumento forte para a tentar terminar o mais rápido possível.  

Ou seja, sem segurança não há economia e isso está a prejudicar fortemente a economia europeia para além do que já era a perda de competitividade estrutural evidenciada pelo relatório Draghi. 

Penso ter demonstrado que, apesar do diagnóstico certeiro, o futuro alternativo de uma UE competitiva proposto no relatório Draghi é irrealista no investimento proposto e na adoção, sem mais, de soluções relevantes, mas já conhecidas e não implementadas até aqui. O irrealismo é acentuado por fatores relevantes não mencionados, com realce para os custos crescentes (atuais e futuros) para a UE da guerra na Ucrânia se esta não terminar brevemente, o que deverá acontecer com uma influência decisiva das autoridades da UE, usando o mandato atribuído pelos cidadãos europeus.