Maria Natália Gonçalves, OBEGEF
Falar de Economia subterrânea também é falar de cumplicidades e de incoerências com que compactuamos e em relação às quais dificilmente podemos eximir-nos da nossa responsabilidade cívica.
Hoje escrevo sobre o que vivenciei em primeira pessoa e que dispensa doutrinas ou estatísticas, pois falar do que se vive e não do que se ouve dizer, confere-nos uma outra autoridade.
Contratei um serviço para realizar uma pequena obra doméstica. O orçamento foi apresentado sem IVA, o que me incomodou, pois preferia ter visto sem delongas o preço final. Quando questionei o empreiteiro sobre os termos do pagamento, foi-me dito que se quisesse pagar com o IVA poderia fazê-lo por transferência bancária; caso contrário, teria de pagar em numerário.
Num primeiro momento, confesso não ter entendido o alcance da opção que me era dada. Titubeei e com algum embaraço pedi para pensar... Nesse momento, já a tentação me havia invadido poderosamente e depressa imaginei o que poderia fazer com a ‘poupança’ de umas centenas de euros que me estava a ser sugerida.
O dilema é óbvio: ou aceitava a proposta que me era oferecida como uma benesse ou dava espaço à minha consciência cívica e moral e pagava pelo preço acrescido do IVA, sabendo que desse modo o empreiteiro teria que declarar aquele rendimento.
A primeira opção era bastante tentadora, mas gerava em mim um sentimento de incongruência com o que tem sido o meu discurso e posicionamento público. Não sei se saberia viver com isso... Por outro lado, rejeitar a oferta colocava-me numa posição desconfortável, pois seria seguramente interpretada como expressão de uma superioridade moral bacoca ou de uma esperteza diminuída; afinal, quem não aprecia uma boa oportunidade para ‘fugir’ aos impostos, sobretudo quando esse comportamento é socialmente esperado e até valorizado como sinal de astúcia intelectual?
Não vou aqui revelar como resolvi o impasse, pois sempre seria julgada ou de infratora ou de arrogante em busca de vanglória. Mas, deixar aqui algumas reflexões sobre o assunto eu posso e devo.
Convenhamos que por mais íntegro que seja um cidadão há situações em que é muito difícil resistir. Todos temos fraquezas e cometemos erros e se há alguém “... que pensa estar em pé, veja que não caia” (I Coríntios 10:12 ARA), pois a tentação é real e encontra-nos ao virar da esquina.
Porém, há assuntos que precisam ser falados com desassombro.
Grosso modo, os impostos servem para financiar as atividades do Estado e a tradição tem sido a de criticarmos quase tudo o que é feito. Sim! Há problemas graves de organização e eficiência dos serviços públicos, mas daí a considerar imprestável quase tudo o que é ação do Estado é duvidoso, para não dizer, absurdo.
Tendo assim a presumir que esta narrativa social enviesada quanto à gestão dos dinheiros públicos possa estar ao serviço de um propósito sombrio e pouco nobre. Suspeito mesmo poder servir como justificação para comportamentos grupais fraudulentos, como é o da fuga aos impostos.
O Estado merece, pois não só cobra montantes de imposto exagerados, como também faz desses recursos uma má gestão, dir-me-ão. Mas, então é melhor privá-lo de parte desses recursos, numa construção que tem tudo de “lógica da batata”? Será mesmo assim ou o que procuramos é um argumento para apaziguar as nossas consciências sempre que movidos por interesses egoístas?
Toda a fraude fiscal é escorada numa estrutura de cumplicidades e complacências individuais das quais, de uma forma ou de outra, todos fazemos parte. Apropriar-nos em consciência dessa verdade pode trazer-nos um sentido de compromisso e responsabilidade para com o coletivo que tanto precisamos e que uma postura autofágica não permite.
Até podemos ser “espertos” o suficiente para nos furtarmos ao pagamento dos impostos devidos e quem nunca...? Mas que essa decisão seja tomada com pudor, consciência da ilicitude e clareza quanto ao facto de estarmos, injustificadamente, a causar dano ao erário público e, de certo modo, prejudicando a qualidade dos benefícios públicos que, bem ou mal, muito ou pouco, todos usufruímos. Quem não cumpre com as suas obrigações fiscais e desfruta de prestações sociais, não deveria ter o direito de criticar o modo de funcionamento do Estado social. Não porque ele seja bem organizado ou eficiente, mas porque é uma atitude imoral!
Falar de Economia subterrânea também é falar de cumplicidades e de incoerências com que compactuamos e em relação às quais dificilmente podemos eximir-nos da nossa responsabilidade cívica.