Mário Tavares da Silva, Expresso online
O surgimento da Autoridade para o Combate ao Branqueamento de Capitais e ao Financiamento do Terrorismo (ACBC) constitui, aliás, a melhor prova do reconhecimento da própria UE quanto à necessidade de adotar uma abordagem holística e harmonizada dos múltiplos e, não raras vezes descoordenados esforços, que os diferentes Estados-Membros vem desenvolvendo no contexto da prevenção do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo
Após um longo e exigente processo negocial, foi finalmente publicado no passado dia 19 de junho o pacote AML (Anti-money laundering and countering the financing of terrorism). Este pacote legislativo assenta em três importantes pilares jurídico-normativos, corporizando aquela que se perspetiva poder vir a ser uma nova era no combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo (BC/FT).
Um primeiro pilar assenta no Regulamento (UE) 2024/1620 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de maio, procedendo à criação da Autoridade para o Combate ao Branqueamento de Capitais e ao Financiamento do Terrorismo (ACBC), entidade há muito aguardada e que a Comissão terá de instituir e colocar em efetivo funcionamento até 31 de dezembro de 2025.
O segundo pilar é concretizado pelo Regulamento (UE) 2024/1624, também do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de maio de 2024, dirigindo-se primacialmente à prevenção da utilização do sistema financeiro para efeitos de branqueamento de capitais ou de financiamento do terrorismo (BC/FT).
Um terceiro e não menos importante pilar é o que nos traz a Diretiva (UE) 2024/1640 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de maio de 2024, relativa aos mecanismos a criar pelos Estados-Membros para prevenir a utilização do sistema financeiro para efeitos de BC/FT, sendo que a obrigação de transposição da diretiva pelos diferentes Estados-Membros deverá ocorrer até 10 de julho de 2025.
O pacote agora aprovado modifica, substantivamente, o regime operacional das entidades obrigadas, através do estabelecimento de um conjunto de regras comuns para todos os Estados-Membros no combate ao BC/FT, pela criação de uma nova autoridade de supervisão e, não menos relevante, pela previsão e exigência de cumprimento de novos requisitos da diligência devida no contexto da prevenção do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo PBC/CFT.
Embora o novo e ambicioso quadro regulatório seja muito exigente, o legislador europeu teve o cuidado de mitigar sobressaltos na sua aplicação pelos diferentes Estados-Membros, prevendo, de forma sábia e prudencial, a sua gradual entrada em vigor, criando assim efetivas condições para que os procedimentos internos possam ser ajustados às exigências trazidas pelo novo ambiente regulatório e, por essa via, reduzindo o risco de incumprimentos e das inerentes penalidades financeiras e outras sanções administrativas que, por regra, a eles se encontram associados.
No primeiro pilar destaca-se, como já referimos, pela sua relevância, a criação da Autoridade para o Combate ao Branqueamento de Capitais e ao Financiamento do Terrorismo (ACBC), a qual se constitui, em primeira linha, como uma relevante resposta à natureza transfronteiriça do crime e do produto a ele associado, visando mitigar os riscos de ineficácia dos múltiplos esforços desenvolvidos pelos Estados-membros para a PBC/CFT, no quadro mais alargado de funcionamento do sistema financeiro da União.
O surgimento da ACBC constitui, aliás, a melhor prova do reconhecimento da própria UE quanto à necessidade de adotar uma abordagem holística e harmonizada dos múltiplos e, não raras vezes, descoordenados esforços que os diferentes Estados-Membros vem desenvolvendo no contexto da PBC/CFT.
A criação de uma entidade com a natureza, configuração e mandato da ACBC pode, decisivamente, constituir a “cola” colaborativa e informada que faltava para uma maior eficácia no combate ao BC/FT, ligando, sistematizando e harmonizando, as múltiplas estratégias e abordagens que vem sendo postas em prática nos diferente Estados-Membros e, desse modo, contribuindo para uma desejável e efetiva aplicação de regras harmonizadas nesse domínio.
Está, nesta medida, justificado o entusiasmo e, sobretudo, as elevadas expetativas que a UE coloca na criação desta nova entidade, uma vez que dela se espera que possa vir a assegurar uma supervisão eficiente e adequada das entidades obrigadas que colocam um risco elevado no que respeita ao BC/FT, no reforço das abordagens comuns de supervisão para todas as outras entidades obrigadas não selecionadas e numa maior (e mais desejável) facilitação no processo de realização de análises conjuntas e dos próprios exercícios de cooperação promovidos entre as diferentes Unidades de Informação Financeira (UIF). Complementarmente, e para que a supervisão em matéria de BC/FT atinja um nível eficiente e uniforme em toda a União, é crítico que a ACBC possa exercer, de forma efetiva e eficaz, os poderes de supervisão direta de um determinado número de entidades obrigadas selecionadas do setor financeiro, incluindo os prestadores de serviços de criptoativos e procedendo, nesse contexto, quer ao acompanhamento, análise e intercâmbio de informações sobre os riscos de BC/FT que se revelem suscetíveis de afetar o mercado interno, quer à coordenação e fiscalização dos supervisores em matéria de PBC/CFT do setor financeiro e não financeiro, o que naturalmente deverá incluir os organismos de autorregulação e a coordenação e apoio das UIF.
Entre outras tarefas que a ACBC irá realizar destacam-se as que deverão ser desenvolvidas em colaboração com as autoridades de supervisão nacionais e, bem assim, as avaliações periódicas das instituições de crédito e das instituições financeiras que operam em pelo menos seis Estados-Membros. A tudo isto some-se o papel fundamental que a ACBC irá assegurar na emissão de orientações relativas às suas operações, bem como o poder de emitir decisões vinculativas dirigidas a entidades obrigadas, selecionadas individualmente e, não menos relevante, o poder que ainda lhe é outorgado para a imposição de sanções administrativas e pecuniárias nos casos em que ocorra incumprimento.
Para o sucesso da sua missão, será igualmente relevante destacar a possibilidade que se prevê da ACBC, a Procuradoria Europeia, a Europol, a Eurojust e o OLAF poderem trocar informações estratégicas e outras informações não operacionais, tais como tipologias e indicadores de risco, nos domínios da sua competência.
De modo mais instrumental, mas complementar ao papel reservado à ACBC, devemos atentar no segundo pilar, concretizado pelo Regulamento (UE) 2024/1624, também do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de maio de 2024, ), que entrará em vigor 21 dias depois após a publicação e que será aplicável a partir de 10 de julho de 2027, com exceção dos agentes de futebol e a algumas operações de clubes de futebol profissional, como sucede, por exemplo, com as operações desenvolvidas com um investidor ou com um patrocinador, às quais deverá ser somente aplicável a partir de 10 de julho de 2029.
Esta emergente preocupação com as vicissitudes transacionais operadas no mundo do futebol está, aliás, alinhada com a perceção clara que todos temos, de que as atividades levadas a cabo pelos clubes de futebol profissional e pelos seus agentes são, ao fim e ao resto, das mais expostas a riscos de branqueamento de capitais e às suas infrações subjacentes. Tal deve-se a múltiplos fatores que fazem parte do universo futebolístico, como sejam a popularidade global do futebol, os consideráveis montantes que por regra são envolvidos, os fluxos de caixa e os interesses financeiros convocados, a prevalência de operações transfronteiriças e, não raras vezes, a existência de estruturas de detenção da propriedade e de modos de funcionamento reveladores de elevada opacidade.
Neste enquadramento, o regulamento agora aprovado, parte da incontornável constatação de que é esta multitude de fatores que expõem o futebol a possíveis abusos por parte dos criminosos para legitimar fundos ilícitos e, desse modo, tornar o desporto vulnerável ao branqueamento de capitais e às infrações que lhe subjazem. Militam, entre as principais áreas de risco, e apenas para dar alguns exemplos, as operações com investidores e patrocinadores, incluindo as empresas publicitárias, e a transferência de jogadores, pelo que impenderá sobre os clubes de futebol profissional e sobre os agentes de futebol a obrigação de pôr em prática um conjunto de medidas sólidas e eficazes no difícil combate ao branqueamento de capitais, e que deverá incluir, se necessário, a aplicação de medidas de diligência relativas à clientela, aos investidores ou mesmo aos patrocinadores. Por outro lado, e com a finalidade de evitar encargos desproporcionados para os clubes mais pequenos e que como tal estão menos expostos a riscos de utilização criminosa, os Estados-Membros deverão poder, com base num risco comprovadamente menor de branqueamento de capitais e dos crimes subjacentes e, bem assim, do financiamento do terrorismo, isentar, total ou parcialmente, determinados clubes de futebol profissional dos requisitos mais exigentes previstos no novo regulamento.
Para além disso, este pilar encerra em si outras relevantes obrigações como, por exemplo, a que impende sobre as instituições de realizarem avaliações periódicas dos funcionários responsáveis pelo cumprimento das normas relativas à PBC/CFT e, por outro, as obrigações que impendem sobre as empresas-mãe de deverem adotar medidas e políticas de PBC/CFT a nível do próprio grupo, a qual é aliás extensível a subsidiárias que operem em estados terceiros.
Por outro lado, os contratos de outsourcing terão também novas regras que procurarão garantir que as instituições obrigadas cumprem as normas relativas à PBC/CFT. Também os procedimentos de due diligence e Know Your Customer (KYC) terão uma maior atenção por parte do novo regulamento, prevendo-se um conjunto de requisitos básicos para a diligência devida em transações em dinheiro e o estabelecimento de cooperação com clientes.
Importante será também a previsão de contramedidas dirigidas a países terceiros de alto risco, ficando as entidades da UE obrigadas a limitar as relações comerciais ou transações com pessoas singulares ou entidades jurídicas de países terceiros classificados de alto risco. No quadro desta regulamentação, será também importante não esquecermos a cooperação com a Unidade de Informação Financeira (UIF), prevendo-se que as instituições obrigadas e os seus funcionários devam cooperar com a UIF e comunicar quaisquer suspeitas de transações relacionadas com BC/FT, devendo ocorrer a suspensão de transações se se identificarem suspeitas de que uma determinada transação se encontra relacionada com produtos criminosos ou com atividades de financiamento do terrorismo, situações que devem ser de imediato comunicadas à UIF.
A fechar o pacote, e a completar o novo ambiente regulatório, temos ainda as importantes medidas trazidas pela Diretiva (UE) 2024/1640 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de maio de 2024, cuja principal marca é claramente a de promover o alargamento do âmbito das obrigações impendentes sobre os Estados-Membros, sobretudo impelindo-os a implementar soluções jurídicas e normativas orientadas para o combate ao BC/FT.
Interessante, a este propósito, é a obrigação que recai sobre os Estados-Membros para regulamentar a emissão de vistos gold e de passaportes gold e, sobretudo, a adotar medidas de segurança reforçadas relativamente aos indivíduos que os solicitem. A essa obrigação acrescem outras como a de manter e publicar estatísticas sobre todas as ações tomadas em relação à PBC/CFT, a de manter um registo único e central de contas, no qual possam ser pesquisadas informações relativas a uma conta identificada por um número IBAN, incluindo um número IBAN virtual e, ainda, contas de títulos e de criptoativos.
Como fica claro, este novo pacote normativo da UE apenas peca por tardio.
Na realidade, ao proceder a um alargamento significativo das obrigações que recaem sobre os Estados-Membros relacionadas com a PBC/CFT, a nova regulamentação força os Estados-Membros a instituir novos e exigentes procedimentos e a implementar normas e políticas internas destinadas a garantir a necessária conformidade com as regras agora publicadas.
No meio de tantas e tão impactantes alterações, que irão, estamos certos, trazer maior eficácia na prevenção e no combate ao BC/FT, assalta-me apenas uma dúvida: estarão os Estados-Membros e os próprios mercados realmente preparados para tantas e tão relevantes exigências regulatórias?
Veremos certamente o que nos reserva o futuro, sendo que este, com preocupação de muitos e desconhecimento de outros tantos, há muito que já se iniciou.