Jorge Fonseca de Almeida, Jornal i online

Um Estado não pode deixar de pagar as suas dívidas argumentando que foram contraídas pelas gerações anteriores

A fraude é, em termos gerais, um esquema ilícito e imoral, destinado a obter ganhos ilícitos à custa de terceiros. As narrativas históricas também podem constituir fraudes para enriquecer uns à custa de outros.

Quando alguém morre os herdeiros dividem entre si, de acordo com regras estritas plasmadas no Código Civil, o seu património. Uma regra essencial dita que o património do morto vá em primeiro lugar para saldar as suas dívidas e que só o património líquido (deduzido das dívidas) pode repartir-se entre os legatários. Esta regra aplica-se não só aos indivíduos mas também aos países. Um Estado não pode deixar de pagar as suas dívidas argumentando que foram contraídas pelas gerações anteriores. Pelo contrário tem de pagá-las com os respetivos juros.

A Alemanha contraiu uma enorme dívida para com as populações judaicas que perseguiu e matou e para com os países que invadiu e brutalizou. Não inventou uma narrativa de que o regime hitleriano não representava a Alemanha. Assumiu a dívida e pagou-a ao longo de décadas.

Portugal também contraiu uma dívida para com as populações que escravizou e traficou, para com as populações que sujeitou a trabalho forçado, para com as populações que expropriou das suas terras e bens, para com os territórios que explorou sob o jugo do colonialismo. Essa dívida foi essencialmente contraída por gerações passadas, mas ainda não foi paga.

A regra geral é que o valor das dívidas deve ser subtraído da herança. As sucessivas gerações de Portugal têm recebido uma herança das gerações anteriores sem deduzir as dívidas a certas populações e a certos países. Isso é uma fraude.

Como funciona esta fraude? Primeiro assentou na negação. Como o vulgar burlão que pede emprestado e depois não quer pagar negando que recebeu o dinheiro. Depois com a tese absurda de que a escravização foi benéfica para o escravizado, a exploração foi desenvolvimento e o chicote um instrumento de progresso. Terceiro com a narrativa errada de que as dívidas anteriores não devem ser pagas como estipula o nosso próprio Código Civil e a Lei internacional.

Estas patranhas constituem a enorme fraude com que o Estado português se quer furtar a pagar as dívidas contraídas pelas gerações anteriores querendo receber a herança dessas gerações sem a dedução das dívidas.

Para reganharmos a dignidade de um Estado impoluto e digno não é só preciso pagar as dívidas ao FMI, ao BCE e à União Europeia, é também necessário efetuar um esforço sério de contabilização e de reparação das dívidas históricas para com as vítimas do colonialismo português.

Outros países com passados coloniais, eventualmente menos violentos do que o nosso, reconhecem os seus crimes, pedem desculpas e propõem-se começar a reparar as vítimas de maneiras diversas.

Não fica bem ao Estado português, manter-se “orgulhosamente só” a praticar esta gigantesca fraude.