Mário Tavares da Silva, Expresso online

Nesta espécie de “toolbox criminal” ou de sofisticada “boutique da fraude” encontramos os mesmos peritos, os mesmos contabilistas e outros facilitadores profissionais que disponibilizam os seus “competentes” serviços a todos os sujeitos envolvidos no processo criminoso, sendo que a organização e decisão de tudo e de todos os passos ocorre a um nível superior, em regra por indivíduos que agem na sombra e sem qualquer ligação identificável com a específica situação de fraude detetada

Na espuma dos dias, muito se tem falado na atuação do Ministério Público no plano nacional.

Confesso, desde já, que apesar de desafiante e complexo, não é esse o tema que hoje aqui me traz, ciente que estou que para lá das nossas inquietantes questões internas, é importante termos sempre presente a premissa maior, isto é, a da nossa pertença ao projeto europeu, sobretudo, permitam-me, em vésperas de mais umas importantes eleições para o Parlamento de todos nós, cidadãos europeus, naquelas que talvez, arriscar-me-ia mesmo a dizer, constituirão as mais relevantes de sempre na história da União Europeia, porquanto vividas num tempo em que se assiste a uma deriva contínua, perigosa, silenciosa e autofágica, em resultado da proliferação de movimentos xenófobos e autoritários, sob a preocupante veste de partidos alegadamente normalizados pelo próprio “sistema” e que corroem, implacavelmente, um pouco por toda a Europa, em maior ou menor intensidade, os alicerces das nossas instituições democráticas.

Vem isto a propósito do relevante Relatório da Procuradoria Europeia (EPPO Annual Report 2023) que recentemente, e em boa hora refira-se, foi publicado e que constitui, ademais, uma inegável prova de que há mais vida para lá do Ministério Público nacional e que há temas, tão ou mais relevantes, que a todos importa discutir, na sua qualidade de cidadãos europeus de pleno direito.

Para os leitores menos familiarizados com este tema, diríamos que a Procuradoria Europeia (ou “European Public Prosecutor's Office”) se assume, de uma forma simplista, como uma “espécie” de Ministério Público da União Europeia, tendo a responsabilidade de desenvolver as investigações que envolvam vários Estados-Membros, relacionadas com fraudes com fundos da UE no valor de mais de €10.000 e fraudes ao IVA que envolvam prejuízos de mais de €10 milhões, instaurar a ação penal, bem como deduzir acusação e sustentá-la na instrução e no julgamento contra os autores de infrações cometidas contra os interesses financeiros da União, tal como são definidos na Diretiva (UE) 2017/1371 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de julho de 2017 (Diretiva de «crimes PIF», da sigla francesa «protection des intérêts financiers»), bem como de outras infrações que lhes estejam indissociavelmente ligadas.

Nesse catálogo incluem-se, entre outros, crimes económicos e financeiros, como o uso indevido de fundos, o branqueamento de capitais, a fraude ao IVA e a corrupção.

São pois, por assim dizer, múltiplos e complexos os desafios a que a Procuradoria Europeia é chamada, tais como o de combater as situações de fraude, como as que decorrem da utilização ou apresentação de declarações ou documentos falsos, incorretos ou incompletos para obter financiamento da UE, a utilização ou apresentação de declarações ou documentos falsos, incorretos ou incompletos, a fim de obter contratos para projetos financiados pela UE (prática generalizada em programas de construção, resíduos, tecnologia e desenvolvimento de RH), o não pagamento ou reembolso ilegal do Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA), nomeadamente através de esquemas de fraude carrossel/operador fictício, o não pagamento de alfândegas (por exemplo, contrabando de tabaco ou de veículos automóveis de elevado preço e sua declaração às autoridades aduaneiras a um preço valor falsamente reduzido), situações de corrupção ativa e passiva de funcionários públicos, incluindo esquemas de suborno, de conluio, colusão manipulatória ou, ainda, de incumprimento de deveres relacionados com a atribuição de financiamento da UE.

Tal responsabilidade e domínio material de ação eleva, de facto, a atuação deste importante órgão da União Europeia para um patamar de incontornável relevância na consecução de uma maior eficácia no funcionamento do modelo de governação europeu, o que aliás é assegurado, sobretudo, pela saudável e democrática circunstância da Procuradoria Europeia desenvolver toda a sua atividade num ecossistema de total independência, o que na prática significa que atua tendo por base, exclusivamente, a proteção dos interesses financeiros da União, não recebendo, nessa medida, os Procuradores Europeus, quaisquer instruções de entidades externas à Procuradoria Europeia, incluindo naturalmente de governos e autoridades nacionais, da Comissão Europeia e de outras instituições, órgãos, organismos e agências da UE.

É, por conseguinte, nesse quadro de total independência, que constitui, refira-se, o ADN da Procuradoria Europeia, que devemos refletir sobre os importantes resultados constantes do relatório agora publicado.

Em primeiro lugar, porque o Relatório confirma que a escala da fraude que afeta os interesses financeiros da UE, em particular a relacionada com a efetiva perda de receitas do orçamento, vem, desde há algum tempo, a ser subestimada, tendência que se espera poder vir a ser mitigada, até pela maior visibilidade da Procuradoria Europeia, da sua atividade e, em especial, do seu contributo para uma efetiva e mais eficaz proteção dos interesses financeiros da União.

É, aliás, essa maior visibilidade que explica, em parte é certo, no que aliás constitui um sinal muito positivo que, em 2023, o nível de conhecimento e de sensibilização dos cidadãos europeus relativamente à existência e importância da Procuradoria Europeia tenha aumentado significativamente, circunstância evidenciada de forma clara pelas 2 494 denúncias de crimes apresentadas nesse ano, e que traduzem, face ao ano anterior (2022) um aumento percentual de 29%.

Também a deteção de fraudes na UE por parte das autoridades nacionais responsáveis revela sinais de melhoria, com um total de 1 562 denúncias de crimes (mais 24 % do que em 2022). Este melhor resultado no plano da deteção é justificado, em grande parte, pelo crescente “catálogo” dos interesses financeiros da UE a proteger, sobretudo como resultado da intensificação do processo de implementação dos investimentos abrangidos pelo pacote de financiamento proporcionado aos Estados-Membros pelo NextGenerationEU.

A este propósito, realcem-se as mais de 200 investigações relacionadas com o financiamento ao abrigo do NextGenerationEU, com danos estimados em mais de €1,8 mil milhões e em que foram determinadas ordens de “congelamento” no valor de €1,5 mil milhões.

Para além destes importantes resultados, o Relatório traz um outro importante elemento de reflexão, ao colocar o foco da atuação da Procuradoria Europeia, não apenas na perspetiva da proteção do interesse económico e financeiro da UE como cuidando, ainda, de alertar, simultaneamente, todos, cidadãos e autoridades nacionais dos diferentes Estados-Membros, que a escala da fraude lesiva dos interesses financeiros da União se explicará, em grande medida, pelo permanente envolvimento de grupos de criminalidade grave organizada, em que os respetivos membros continuam, por exemplo, a considerar a fraude ao IVA como um alvo fácil, dado o baixo risco associado à engenharia contratual fictícia que lhe subjaz.

Na prática, e para ganhar bom dinheiro, bastará apenas encontrar um contabilista médio, um bom advogado e alguém que saiba falar. E isto é tanto mais verdade porque as organizações criminosas tendem a atuar, em larga medida, como autênticas empresas, procurando sempre, como bem refere o relatório, a maximização dos seus lucros, a minimização dos respetivos custos e a evitação de riscos desnecessários, recorrendo para este efeito, a afinal, a operadores especializados, com o escopo único de branquear o dinheiro ilicitamente obtido.

As investigações da Procuradoria Europeia evidenciam ainda a facilidade com que as referidas organizações estabelecem atividade em qualquer país, procedendo de forma ágil ao recrutamento de cidadãos nacionais com conhecimentos específicos do mercado, da legislação e das práticas empresariais locais e, sobretudo, no que é talvez o elemento mais importante, com as necessárias e relevantes conexões locais.

Acresce que essas organizações tendem a deslocar-se para Estados-Membros onde as capacidades de deteção e de investigação revelam ser mais frágeis e, como tal, menos eficazes, detetando lacunas em mercados específicos, promovendo a utilização de técnicas sofisticadas na prática dos crimes e ocultando os proventos ilicitamente obtidos.

É neste processo contínuo e de grande volatilidade que acompanha, por regra, a atividade destas organizações criminosas que emerge, agora, e de forma preocupante, um elemento crítico adicional, fruto do envelope financeiro materialmente relevante que se abriu aos Estados-Membros por força do NextGenerationEU.

Na realidade, toda esta rede de organizações criminosas vê, agora, no referido programa de financiamento europeu, um novo espaço de atuação, procurando reinventar as suas abordagens e estratégias dissimuladoras, fraudulentas e, naturalmente, lesivas dos interesses financeiros da UE.

Neste particular, o Relatório agora publicado espelha também o relevante e atento trabalho de investigação que tem vindo a ser desenvolvido pela Procuradoria Europeia que, no final de 2023, apresentava 206 investigações ativas relacionadas com o financiamento do NextGenerationEU, num prejuízo que se estimou em mais de €1,8 mil milhões e recobrindo áreas tão diversas como as relativas aos transportes públicos, infraestruturas públicas, economia e tecnologia verdes, apoio à competitividade das empresas, inovação e transformação digital, capacitação, formação e desenvolvimento, educação e pesquisa, saúde e administração pública em geral.

É a este propósito interessante registar que os defraudadores não foram muito criativos na sua forma de atuação, recorrendo a estratégias já testadas e, no seu entender, com taxas de insucesso muito reduzidas. Assim, é sem surpresa que o Relatório refere a utilização de declarações ou de documentos falsos, incorretos ou incompletos e a não divulgação de informações em violação de obrigações específicas legalmente previstas como constituindo os “expedientes” preferidos dos defraudadores para enganar as autoridades públicas.

Os candidatos a fundos do NextGenerationEU procuram, sobretudo, dissimular o não preenchimento de critérios essenciais ou vantajosos – económicos, jurídicos e de facto - para a obtenção do financiamento, ou optando mesmo por não declarar efetivas situações de conflito de interesses ou de duplo financiamento as quais, no final, funcionando e sendo conhecidos das entidades concedentes do financiamento, sempre seriam impeditivos da sua atribuição. Complementarmente a essas situações, foram ainda identificados pela Procuradoria Europeia crimes instrumentais, tais como os relativos à falsificação de documentos ou à apresentação de declarações falsas perante as autoridades públicas.

Outra área de risco em que os defraudadores estiveram particularmente ativos em 2023 no quadro do NextGenerationEU foi, segundo o Relatório, a relativa às despesas relacionadas com aquisições em procedimentos de contratação pública, em que, por exemplo, se detetou que os fundos haviam sido transferidos para os beneficiários como adiantamentos para fazer face às despesas da fase inicial de um projeto quando, na realidade, esses beneficiários se vieram a revelar como empresas e/ou operadores económicos fictícios. Na prática, constatou-se que os projetos não haviam sido efetivamente executados e, por outro, pasme-se, que os fundos adiantados pela autoridade pública teriam sido imediatamente transferidos para contas bancárias no estrangeiro, com destino final em países não pertencentes à UE, o que teria motivado, adicionalmente, a Procuradoria Europeia, a promover a abertura de investigações de branqueamento de capitais.

Finalmente, o Relatório deixa ainda duas outras ordens de preocupações no que respeita à natureza da fraude no âmbito dos financiamentos associados ao NextGenerationEU.

Por um lado, sinalizando a prática de irregularidades por funcionários públicos, incluindo, na sua forma mais gravosa, de crimes de corrupção. São, sobretudo, identificados casos no Relatório em que os funcionários públicos foram considerados suspeitos de terem agido ilegalmente em favor de beneficiários privados ou no quadro de efetivas situações de conflito de interesses. Esta situação reforça, aliás, em nosso entender, a necessidade de implementar, a montante, estratégias adequadas de capacitação e de formação no plano da ética e da integridade e, a jusante, concretizando o princípio da tolerância zero para comportamentos fraudulentos, um efetivo sancionamento dos prevaricadores em causa.

Por último, a caraterização que a Procuradoria Europeia faz destes novos esquemas de fraude é igualmente um elemento importante para todas as entidades com responsabilidades na investigação, controlo e repressão da fraude, desvendando, em particular, que todo esse fenómeno se ancora num único centro operacional, que coordena por sua vez todas as atividades criminosas e onde, inclusivamente, toda a documentação é preparada.

Nesta espécie de “toolbox criminal” ou de sofisticada “boutique da fraude” encontramos os mesmos peritos, os mesmos contabilistas e outros facilitadores profissionais que disponibilizam os seus “competentes” serviços a todos os sujeitos envolvidos no processo criminoso, sendo que a organização e decisão de tudo e de todos os passos ocorre a um nível superior, em regra por indivíduos que agem na sombra e sem qualquer ligação identificável com a específica situação de fraude detetada.

Por todas as razões, o Relatório da Procuradoria Europeia constitui, para todos os responsáveis por uma adequada e eficaz proteção dos interesses financeiros da União, um documento de leitura obrigatória. São pelos menos três as razões que divisamos.

Em primeiro lugar, pelos relevantes resultados que apresenta naquela que é a missão principal da Procuradoria Europeia, evidenciando, em nosso entender, a incontestável importância que este órgão assume no quadro da governação europeia e, em especial, no combate à fraude transnacional.

Em segundo lugar, pelo que projeta para o futuro no plano do combate à fraude, sobretudo para enfrentar, de forma eficaz, uma mais fina e sofisticada “criatividade” que os defraudadores, sem perderem tempo, não hesitaram em colocar em marcha para um aproveitamento criminoso pleno dos fundos associados aos novos instrumentos de financiamento europeu, em especial os que resultam do NextGenerationEU.

Em terceiro, e por último, pelo que pode inspirar outros (pessoas e organizações) a fazer mais e melhor, mostrando que a Procuradoria Europeia constitui, sem dúvida, um dos mais necessários e relevantes órgãos da União no combate à fraude, emprestando uma solução global, sistémica e naturalmente transfronteiriça nas abordagens a adotar para uma maior eficácia nesse combate, na certeza porém de que é essa a solução que melhor serve o objetivo de garantir uma boa e regular gestão dos fundos europeus que, por estes anos, e até ao final da década, irão jorrar intensamente um pouco por toda a Europa.