Sónia Maria Ah Lima, OBEGEF
Será que somos apenas crianças crescidas? As sociedades informais da nossa infância reproduzem-se nas corporações. Escândalos resultantes de fracas culturas organizacionais continuam a contribuir para elevar os custos da fraude.
A nossa infância esta repleta de recordações e nada melhor para reavivar a nossa memória que olharmos para aquelas fotografias tiradas com os nossos colegas no jardim de infância e ensino básico. Transpirávamos felicidade, inocência e ao mesmo tempo um ar de clara satisfação e orgulho. A escola tinha regras, princípios e preparávamos para sermos os adultos de amanhã.
No entanto, onde existe o lado positivo existe sempre um lado obscuro e muitas vezes reprimido da nossa memória. Nessa realidade paralela, castigos físicos (até uma certa medida) eram permitidos e até incentivados, coexistindo com uma política silenciosa, que tomo a liberdade de designar a “as regras obscuras do recreio”. Nessas regras, informais, onde a justiça não era sem dúvida o primeiro objetivo, mas onde imperava uma “lei máxima”, de que o mais forte suprime e domina o mais fraco (Savahl et al., 2023). As vozes dos mais fracos são silenciados, onde os adultos, tão frequentemente, preferiam nada fazer, na esperança de dessa forma preparar as crianças para o mundo de amanhã.
Vamos então dar um salto no tempo onde as crianças de ontem são os adultos de hoje. Será que as ditas “regras obscuras do recreio” ainda não se aplicam nos tempos de hoje? Utilizemos um exemplo prático onde poderemos rever de forma mais concisa ao que me refiro. O João, uma criança de 10 anos, com notas medianas na escola e que viveu e sofreu na primeira pessoa a “cultura” das “regras do recreio”. Viu merendas e mesadas roubadas, colegas a serem agredidos fisicamente e psicologicamente, num clima onde o mais forte pode agredir impunemente e castigar o próximo. Atualmente o João, já com 40 anos, juntou-se às fileiras do mundo corporativo. Trocou a bata escolar pelo fato e as brincadeiras de criança trocadas pelas conversas ao redor da máquina da água e do café. Mas será que de facto ouve assim tantas mudanças? Ou até que ponto os seus traumas de criança ainda afetam o seu comportamento como um adulto responsável e supostamente apelam a consciência dos seus direitos, como cidadão e empregado.
Herman, em 1971, propõe o modelo do iceberg onde vemos claramente a separação entre o conceito cultura organizacional e os componentes formais e informais nas organizações (Ghinea & Bratianu, 2007). Neste contexto observamos como fatores informais, e por tal não rastreáveis e documentados nas organizações, são decisivos para o seu sistema de valores e consequentemente a sua cultura organizacional. As missões, sistema de valores das corporações são meritórias, pese embora, faça sentido um olhar critico à sua aplicabilidade na prática.
A últimas décadas estão repletas de exemplos desastrosos, em consequência de claras desconexões entre a cultura corporativa formal e a informal.
A Theranos é um excelente exemplo. Estamos em 2018 e a empresa uma vez considerada como a estrela dos USA conhece o seu trágico fim. No seu auge a empresa obteve mais 700 milhões de dólares de investidores estando avaliada em 9 mil milhões de dólares (Griffin, 2022). A falsa promessa de tornar as análises de sangue menos dolorosas e mais eficazes conduziu a uma cultura corporativa corrosiva, onde os empregados deviam executar ordens sem questionar, pois, caso contrário estariam sujeitos a pesadas retaliações por parte da gestão de topo.
A Wirecard é um excelente exemplo, onde em 2020, 2 mil milhões de dólares tinham desaparecido. A conjugação de diversos fatores entre os quais uma ausência de entidades fiscalizadoras eficazes, auditores externos com critérios duvidosos e uma gestão de topo e intermédia resultou no maior fraude corporativa na história da Alemanha (Löhlein & Huber, 2022).
O João agora trabalha no departamento financeiro e como empregado zeloso de altos padrões morais repugna todo o tipo de práticas não transparentes e corretas. No entanto, identifica movimentos invulgares nos seus registos financeiros e que o seu superior hierárquico tem um estilo de vida não condizente com a média dos salários praticados. Como o João poderá reagir?
Apesar de o tema não ser novo e remontar desde a década de 70 Ralf Nader (Nader et al., 1972), avanços recentes fortaleceram o tópico canais de denúncia na União Europeia. O principal objetivo das recentes alterações foi a promoção da transparência nas organizações públicas e privadas, através da adoção de medidas que promovem e protegem os potenciais denunciantes.
Em que medida o João se sentirá forte o suficiente para denunciar uma situação de abuso por parte do seu superior hierárquico? Não será mais fácil procurar outro emprego ou em alternativa, replicar o comportamento dos adultos na escola, ou seja, olhar para baixo e ignorar?
Será que as organizações para além da criação dos mecanismos de inventivo, tal como os canais de denúncia, não precisam de trabalhar no campo psicológico dos seus empregados, onde o medo e as “regras obscuras do recreio” ainda parecem imperar.
Referências
Ghinea, V. M., & Bratianu, C. (2007). Organizational culture modeling. Management & Marketing Challenges for the Knowledge Society, 2(June), 257–276.
Griffin, O. H. (2022). Promises, Deceit and White-Collar Criminality Within the Theranos Scandal. Journal of White Collar and Corporate Crime, 3(2), 109–121. https://doi.org/10.1177/2631309x20953832
Löhlein, L., & Huber, C. (2022). The end of audit . Spectacle and love in the audit society audit society. https://doi.org/10.1108/QRAM-11-2021-0199
Nader, R., Petkas, P. J., & Blackwell, K. (1972). whistle-blowing:The report on the conference on professional responsibility. In Science (Vol. 37, Issue 964).
Savahl, S., Adams, S., & Hoosen, P. (2023). Children’s Experiences of Bullying Victimization and the Influence on Their Subjective Well-Being: a Population-Based Study. Child Indicators Research, 1–29. https://doi.org/10.1007/s12187-023-10084-4