Óscar Afonso, Dinheiro Vivo

Apesar de parecer que já tudo foi dito sobre o corte de taxas de IRS anunciado pelo governo AD (Aliança Democrática), neste artigo abordo aspetos que ainda não surgiram no debate público e que me parecem fundamentais para uma correta apreciação do tema. No final, de forma associada, aponto alguns dos desafios orçamentais próximos do novo governo.

Começo por salientar que o governo AD já reconheceu insuficiências de comunicação no anúncio do corte de taxas de IRS em 2024 no valor de 1500 milhões de euros (M€). Isto porque a comparação é com 2023 – conforme inscrito no programa eleitoral da AD e no programa do governo – e esse valor incorpora o corte de taxas de cerca de 1300 M€ já plasmado no Orçamento do Estado de 2024 (OE-24), herdado do anterior governo PS, pelo que só cerca de200 M€ de corte adicional é decisão do governo AD. Este é o valor provisório conhecido à data em que escrevo este artigo – creio que pouco mudará no Conselho de Ministros de dia 18 de abril.

A AD e o novo governo não mentiram em campanha eleitoral nem agora. No entanto, precisam de melhorar a sua comunicação, até porque será decisiva para mostrar os ‘frutos’ esperados da governação e melhoraras intenções de voto, o que potenciará a estabilidade de governação e de políticas necessárias para executar reformas cruciais para o progresso económico e social do País.

Apenas prosseguir com boas políticas públicas não é suficiente, especialmente num cenário parlamentar fragmentado como o atual. É crucial saber comunicá-las eficazmente. No caso de não serem viáveis devido à falta de apoio parlamentar, é igualmente importante explicar de forma clara e transparente as razões pelas quais esse apoio não foi alcançado.

O que este artigo começa por abordar não é o problema de forma da comunicação recente. É algo substantivo e relevante que o PSD e a AD não comunicaram neste caso, pelo menos de uma forma quantificada e cabal, para que não restem dúvidas sobre o seu papel no desagravamento do IRS. A realidade é que cerca de 73% dos 1500 M€ de corte de taxas de IRS em 2024 é atribuível, de forma direta e indireta, a propostas do PSD e AD, conforme resulta dos cálculos abaixo.

Por simplicidade de análise, comecemos por considerar que o anterior governo inscreveu 1300 M€ de corte de taxas de IRS no OE-24 apresentado em outubro de 2023, o que até traduzirá alguma subrestimação. Com efeito, o valor exato de redução de IRS no OE-24 de 1327 M€ inclui, além do corte de taxas, duas componentes não quantificadas:

  1. A atualização dos escalões pela inflação, que não pode ser considerada como corte de imposto;
  2. A atualização do mínimo de existência para que o novo salário mínimo, mais alto, não pague IRS.

Acontece que no Programa de Estabilidade 2023-2027 (PE 23-27), de abril de 2023, o anterior governo PS apenas previa oficialmente 400 M€ de redução de carga fiscal em IRS (depreende-se que via redução de taxas), sem contar com o mínimo de existência nem a atualização de escalões.

Posteriormente, o PSD anunciou em agosto de 2023 um pacote inicial de reforma fiscal incluindo uma redução de 1200 M€ em sede de IRS para aplicar ainda em 2023, desagravamento que seria para continuar em 2024. Essa proposta foi reiterada em setembro e apresentada ao Parlamento, num contexto de emergência, para ajudar a recuperar o poder de compra das famílias, fortemente penalizado pela inflação acumulada e pela subida historicamente rápida das taxas de juro.

Na altura, o governo PS rejeitou essa proposta porque iria incorporar um desagravamento de IRS no OE-24. A questão é que 2024 é ano de eleições europeias – de notar que, nessa altura, ninguém imaginava que iria haver eleições legislativas antecipadas – e o governo não quis ficar atrás da proposta do PSD, elevando para cerca de 1300 M€ o corte de taxas de IRS em 2024, quando o que tinha planeado eram apenas 400 M€ no PE 23-27.

Ou seja, a proposta do PSD levou o governo a ‘ir a jogo’ em matéria de desagravamento de taxas de IRS e alargar em 900 M€ o corte oficial previsto poucos meses antes, pelo que esses 900 M€ podem ser indiretamente atribuídos ao PSD pela pressão política criada ao governo. Na altura, eu escrevi que a proposta do PSD já tinha esse mérito indireto, beneficiando a população. Mais tarde, vários responsáveis e comentadores da ‘ala socialista’ consideraram que o governo PS tinha ‘destrunfado’ o PSD ao propor uma redução ainda maior, o que confirma a análise.

Reitero que a proposta do PSD era para aplicação imediata em 2023, no referido contexto de emergência social, aliviando logo o orçamento familiar pela baixa das taxas de retenção, pelo que a decisão do governo PS de passar a medida para 2024 prolongou o sofrimento das famílias vários meses. Tudo para poder concentrar essa medida popular em 2024, ano de eleições (europeias).

Posteriormente, com a convocação de eleições antecipadas e a formação da coligação AD, a sua proposta eleitoral de desagravamento de taxas de IRS em 2024 face a 2023, como já referido, foi alargada para 1500 M€, dentro de um pacote maior de 2000 M€ de redução desse imposto, onde também se inclui a não tributação de prémios de desempenho até um salário/ano (cerca de 500 M€). A isso acresceria ainda a redução do IRS jovem 1000 M€, apresentada separadamente.

A celeuma resultou de uma comunicação insuficiente do novo governo aproveitada pela oposição, em particular pelo PS, uma vez que o enquadramento aqui apresentado explica com algum detalhe como surgiu a medida de desagravamento de IRS do PSD e os bons propósitos da mesma.

Fazendo as contas à autoria material do desagravamento de 1500 M€ nas taxas de IRS em 2024 face a 2023 anunciado pelo governo AD, verifico que:

  • 400 M€ (27%) eram intenção original do anterior governo, inscritano PE 23-27 e incorporada no OE-24;
  • 900 M€ (60%) foram adicionados àquele valor pelo anterior governo no OE-24 por pressão da proposta de desagravamento do PSD;
  • 200 M€ é o valor provisório do corte adicional decidido já pelo novo governo AD (13%).

Ou seja, 73% (60%+13%) do corte de taxas de IRS em 2024 pode ser atribuído ao PSD/AD. Pela pressão política sobre o anterior governo da proposta de desagravamento do PSD quando era oposição e pela decisão do novo governo AD (liderado pelo PSD) no remanescente da ideia original do PSD, no âmbito da reforma fiscal anunciada em agosto de 2023.

Parece-me que o PS não fica bem nesta ‘fotografia’ do IRS. Primeiro, apropriou-se da medida de emergência social do PSD para fins eleitorais. Agora ‘cavalgou a onda’ da insuficiente comunicação por parte do governo AD, que terá de estar mais atento e contrariar a ‘máquina comunicacional’ do PS. É ainda caricata a pretensa surpresa do líder do PS de o corte de taxas de IRS da AD ser face a 2023. Com efeito, o autor do cenário macroeconómico do programa eleitoral do PS, Fernando Medina (o anterior Ministro das Finanças), conhece as propostas da AD e afirmou haver margem suficiente no OE-24 para não ser preciso um orçamento retificativo, que seria obviamente necessário se a proposta da AD fosse duplicar o corte de 1500 M€ (ver análise no final do artigo). Além disso, o líder do PS nunca esclareceu se votaria contra essa suposta proposta.

Como diz o povo, ‘a memória é curta’, o que está a ser aproveitado no discurso político pelo PS e restante oposição, e deve ser desconstruído a bem do esclarecimento dos cidadãos.

Por outro lado, numa situação normal, ‘a memória curta’ implica que os governos tomem as medidas mais impopulares no início da governação, guardando as medidas mais populares para o final com vista à reeleição. No atual quadro parlamentar fragmentado e com uma escassa maioria relativa, a situação inverte-se. Para que o governo não esteja a prazo, aumentando nas intenções de voto (e dificultando a eventual ambição da oposição para derrubar o governo), como o Presidente da República salientou no discurso de tomada de posse do passado dia 2 de abril, precisa de implementar o mais rápido possível as medidas populares do seu programa e começar logo a ‘mostrar serviço’, com uma comunicação eficaz.

Ao mesmo tempo, há reformas inadiáveis e difíceis que terá de apresentar, desde logo para conseguir a aprovação da próxima tranche do PRR, mas também no âmbito das negociações com a Comissão Europeia (a iniciar em julho) do novo “Plano Orçamental Estrutural de Médio Prazo” a entregar em setembro, contendo os compromissos em matéria orçamental, de reformas e de investimento. Esse novo Plano, que substituirá o Programa de Estabilidade e o Plano Nacional de Reformas, faz parte do novo quadro revisto de governação económica e orçamental da União Europeia (UE), inserido no exercício do Semestre Europeu. O Plano será de quatro anos (o tempo da nossa legislatura), mas o governo poderá pedir uma extensão de três anos para realizar reformas e investimentos para elevar o potencial de crescimento e a sustentabilidade orçamental dentro das prioridades europeias, como as transições ecológica e digital, a segurança energética ou a defesa.

O novo quadro é mais flexível – adaptado às condições orçamentais e económicas especificas de cada país – e menos exigente em matéria de consolidação, pois a redução mínima do rácio de divida pública no PIB baixa para 1% em média anual para países com rácio acima de 90%, como Portugal, face a cerca de 2% no anterior enquadramento. Contudo, Portugal terá de preservar um saldo equilibrado para manter uma margem orçamental estrutural e falta saber se a Comissão será compreensiva no “novo indicador de despesas líquidas”, que afere a sustentabilidade da divida.

O novo indicador tem por base a despesa primária líquida financiada a nível nacional, ou seja, a despesa pública deduzida de: (i) juros; (ii) medidas discricionárias (i.e., decididas pelos governos) de receita; (iii) despesa cíclica com o desemprego; (iv) despesa nacional com o cofinanciamento de programas financiados pela UE; e (v) despesa com programas da UE inteiramente coberta por receita de fundos da UE (caso do PRR). Um desvio anual positivo de 0,3% do PIB ou acumulado de 0,6% do PIB poderá levar à abertura de um procedimento por défices excessivos, é esse o risco.

Esse será o principal indicador a negociar com a Comissão, tendo a vantagem de deixar funcionar os chamados ‘estabilizadores automáticos’, que reduzem as oscilações do ciclo económico mesmo que o governo não tome qualquer decisão nesse sentido – por exemplo, em recessão verifica-se que as despesas com subsídio de desemprego sobem, injetando dinheiro na economia, enquanto as receitas fiscais baixam por via da menor atividade (com os impostos vigentes) e retiram menos dinheiro da economia, acontecendo precisamente o inverso quando a economia está em expansão.

A Comissão começará por apresentar uma trajetória de referência para este “novo indicador de despesas líquidas”, com base na informação do governo, mas resta saber qual a sua margem negocial. É certo que as medidas fiscais da AD, o seu reduzido efeito imediato e os aumentos salariais prometidos para alguns grupos profissionais irão elevar o “novo indicador de despesas líquidas”. Acresce que, dada a escassa maioria relativa do governoe a necessidade de compromissos (e eventuais contrapartidas), poderão ainda surgir acréscimos de despesa além dos previstos, o que deixa claro que nunca haveria espaço orçamental para o governo AD duplicar o corte de taxas de IRS de 1500 M€ como o PS e outros partidos da oposição quiseram fazer crer.

O novo governo deverá, por isso, obter esses compromissos o mais rápido possível com os partidos da oposição, mas também com os parceiros sociais, de modo a fortalecer a sua posição negocial junto da Comissão e elaborar o referido “novo Plano Orçamental Estrutural de Médio Prazo”.

Faço notar que a Comissão não quererá ser acusada de interferir no processo político, pelo que esse fator poderá ser usado como argumento pelo governo na negociação da trajetória do “novo indicador de despesas líquidas”, pois poderá ter de oferecer concessões para obter compromissos.

O governo terá ainda de demonstrar a bondade das medidas de aumento da competitividade do seu programa–como o desagravamento fiscal e a desburocratização – e o seu impacto na elevação do potencial de crescimento económico a curto-médio-longo prazo, bem como o efeito das reformas preconizadas para aumentar a eficiência da despesa pública, com vista ao seu controlo.

Uma das vantagens do novo quadro europeu de governação económica e orçamental parece ser a maior articulação e mensuração da relação entre investimentos, reformas e a sustentabilidade económica e orçamental; em particular, através do referido indicador de despesas líquidas. Vejamos se as coisas correm bem na prática, sobretudo para Portugal.

Estes são alguns dos desafios próximos do estreito caminho de governação da AD.