Marcus Braga, Jornal i online
A corrupção mora nas relações, nas delegações e nos abusos possíveis, bem como na insuficiência de mecanismos que possam inibir a sua ocorrência: a capacidade de detecção, de prevenção e de repressão
Ligo a televisão e vejo num filme um agente aposentado que vai morar numa cidade menor. Lá, ele é afetado pelos corruptos poderes locais e vê-se compelido a voltar a ativa, vestindo sua roupa de herói para salvar aquela população do domínio estabelecido. Com muitos tiros e bombas, o mal é extirpado no gran finale e enfim reina a paz. Roteiro que se enquadra em muitas películas recentes.
Essa narrativa indica a corrupção como algo delimitado, uma visão maniqueísta de um conjunto de facínoras que precisa ser eliminado, e pouco dialoga com as relações de forças e o desenho institucional daquele governo local, inserido em um sistema federalista e em um conjunto de mecanismos de pesos e contrapesos, como formas de limitação de abusos, nas letras de Montesquieu.
Seria simples se a corrupção fosse apenas um problema individual, de pessoas erradas à frente dos cargos. A corrupção mora nas relações, nas delegações e nos abusos possíveis, bem como na insuficiência de mecanismos que possam inibir a sua ocorrência: a capacidade de detecção, de prevenção e de repressão. A morada da corrupção é difusa no complexo reino das relações.
Autores clássicos, como Rose-Ackerman, vinculam a corrupção ao abuso de poder de uma autoridade pública na distribuição de um custo ou benefício ao setor privado. A corrupção se faz na quebra de relações por quem detém o poder, demandando mecanismos de limitação desse mesmo poder, onde a própria ética é um dos limitadores, mas existem outros, que variam de estruturas formais à participação popular. Um cenário muito mais voltado para a regra do jogo do que para quem está jogando o jogo em si, na boa visão institucionalista de nomes como Daron Acemoglu e Oliver Williamson.
Diante desse diagnóstico complexo do fenômeno da corrupção, o modelo do herói aposentado da cidade do interior do filme de ação pode ser apenas um espantador de moscas, sem adentrar nas feridas do problema, que passam, inclusive, pela qualidade ampla dos governos, suas capacidades estatais, e em especial a efetividade de seus mecanismos de accountability.
Frente ao voluntarismo do herói, ficam as perguntas sobre a inefetividade dos mecanismos de pesos e contrapesos entre poderes e entre entes, previstos nas normas estruturantes daquela sociedade. A corrupção tem seus remédios na política e nas suas gramáticas, que dispõe de dispositivos que ao falharem de alguma forma, permitem cenários dantescos, cujas causas repousam para além dos atores do filme que vestem a roupa de vilão.