Rute Serra, Expresso online

Apesar de nos últimos anos ter sido reconhecida esta umbilical relação entre corrupção e direitos humanos, determinar o grau de vitimização das pessoas é um procedimento complexo

É no contexto jurídico-penal que surge a expressão “crimes sem vítima”, referindo-se, dito de modo simples, àqueles crimes cujas vítimas (da prática de qualquer ação ou omissão tipificada como crime) nem sempre são diretamente identificáveis. Esquecemo-nos, não raras vezes, que os impactos de determinados crimes podem não ser diretos nem facilmente quantificáveis, sendo, porém, elevados no que às circunstâncias sociais, económicas e éticas, concerne.

Neste mês de dezembro, assinalaram-se em dois dias consecutivos – 9 e 10 – respetivamente o dia de combate à corrupção e o dia dos direitos humanos. Em particular neste ano que agora finda, a Declaração Universal dos Direitos Humanos celebrou o seu 75.º aniversário. Neste momento de celebração importa relembrar que, mais de sete décadas depois da assinatura deste relevante instrumento aspiracional e inspirador, do que se pretende como referências universalmente aceites relativas ao comportamento humano, ainda subsistem, aos direitos ali consagrados, violações bárbaras e de tal ordem devastadoras, que comprometem seriamente, no século XXI, a ordem mundial.

Os impactos das violações de direitos humanos repercutem-se na esfera das suas vítimas diretas, aquelas cujo trauma de serem abusadas, discriminadas ou de qualquer forma violentadas, dificilmente poderá ser reparado. É no sofrimento destas que se espelham as negações de direitos fundamentais de liberdade, igualdade, segurança ou dignidade. E é fácil perceber como as comunidades se ressentem desse estado individual fragilizado, quando observamos as fragmentações do tecido e da coesão social e a desconfiança generalizada na autoridade e nas instituições. E no topo desta pirâmide de destruição está o efeito refletido nos Estados que surgem assim instáveis politicamente, subdesenvolvidos economicamente e isolados da restante comunidade internacional.

Veja-se, aqui chegados, como não é muito diferente, se pensarmos nos impactos, desta feita, da corrupção, considerada na sua diversidade semântica.

Porque sabemos o efeito que têm os fenómenos corruptivos na economia global. Porque sabemos que vitimiza os mais vulneráveis ​​e marginalizados da sociedade, afetando a sua capacidade de satisfazer necessidades básicas. Porque sabemos como afeta o investimento público, que resulta enfraquecido para enfrentar os desafios de melhor educação, saúde ou ambiente. Porque sabemos que tudo isto ocorre cada vez mais em contexto transnacional, perpetrado por influentes intervenientes económicos ou políticos, o que representa uma ameaça à paz e à segurança internacionais.

Apesar de nos últimos anos ter sido reconhecida esta umbilical relação entre corrupção e direitos humanos (refletido por duas resoluções adotadas pelo Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas em 2021), determinar o grau de vitimização das pessoas é um procedimento complexo, no qual concorrem duas variáveis significativas: por um lado o facto da corrupção ser um crime nebuloso e por outro a falta de consciencialização das suas vítimas, para essa qualidade.

É, portanto, este o desígnio da fraternidade humana exigível a interventores políticos (não demagógicos) e sociais, mas também dos cidadãos individualmente considerados: comprometerem-se de facto (e não de modo aparente e circunstancial) com a defesa do direito (humano) a um Estado íntegro.