Óscar Afonso, Dinheiro Vivo

No primeiro dia como Primeiro-ministro demissionário, António Costa fez um balanço da sua governação de oito anos - quer no Parlamento quer em entrevista à TVI / CNN. A bem da verdade, antes das eleições legislativas antecipadas de 10 de março do próximo ano, vale a pena escrutinar esse balanço para termos cidadãos eleitores bem informados.

Começo por recordar como António Costa chegou até aqui desde 2014 para entender as suas tão apregoadas "qualidades políticas". Concluo que, apesar de serem qualidades frequentemente exaltadas pelos media, nenhuma delas se traduziu em efetivas melhorias no bem-estar da população, o que deveria ser o critério primordial para avaliar a verdadeira qualidade de um Primeiro-ministro. Pelo contrário, restam os "dotes" de oportunismo, oratória, "ilusionismo político" e, agora, "vitimização" perante a ação da Procuradora-Geral da República (PGR) e do Presidente da República (PR).

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Sobre as cópias, costuma dizer-se que são sempre pior do que o original, pelo que é preocupante que ambos os candidatos à sucessão de António Costa no PS lhe deixem os mais rasgados elogios. Precisamos de governantes que sirvam o País e falem a verdade, mesmo quando ela não é "bonita", pois só com um bom diagnóstico da situação se podem avaliar e resolver os problemas.

Quanto ao legado, começo com as duas principais qualidades da sua "escola política", tão valorizadas pelos media. De seguida, desconstruo o suposto legado económico de 'contas certas" que tanto orgulha António Costa, para depois mostrar o real legado socioeconómico. Termino com a aparente "vitimização" face às ações da PGR (que terá lançado uma "suspeição" e "enxertou" um parágrafo num comunicado, levando à sua demissão) e do PR (que, insinua, terá sido conivente com o "enxerto").

1. Legado político

1.1. Oportunismo político

Setembro de 2014: ante a proximidade de eleições legislativas de 2015, António Costa aproveita a oportunidade criada por António José Seguro, com a realização de eleições primárias no PS, para concorrer e suceder-lhe como Secretário-geral, depois de Seguro ter feito a "travessia do deserto" na oposição, durante a governação PSD-CDS na altura da Troika. O timing de Costa foi perfeito, começando aí a demonstração do seu enorme oportunismo político.

Outubro de 2015: o PS de António Costa perde inesperadamente as eleições legislativas para a coligação PSD-CDS, que governou durante o difícil período do programa de ajustamento da Troika de credores, cujo apoio foi solicitado pelo anterior Governo socialista de José Sócrates para evitar a bancarrota do Estado. A coligação PSD-CDS forma Governo com maioria relativa, mas é derrubada no Parlamento com os votos do PS e da esquerda "radical", PCP e BE (assim classificados devido a propostas como a saída de Portugal da Área Euro e da Nato). Impossibilitado de convocar novas eleições legislativas, por se encontrar nos seis últimos meses do seu mandato, o PR, Cavaco Silva, empossou António Costa como Primeiro-ministro, mas obrigou à celebração de um acordo de incidência parlamentar entre PS, PCP e BE - a famosa "geringonça". António Costa quebrou, pois, a tradição política segunda a qual competia a quem ganhasse as eleições legislativas formar Governo.

Outubro de 2019: o PS de António Costa obtém, desta vez, a maioria relativa nas eleições legislativas e toma novamente posse como Primeiro-ministro. Agora apenas com o apoio ocasional ou abstenção (sem acordo escrito, portanto) de BE, PAN e PCP.

Outubro de 2021: o apoio dos partidos mais à esquerda acaba por colapsar, depois do "chumbo" do Orçamento do Estado para 2022 com os votos contra do PSD, CDS, IL e Chega, mas também do PCP e BE, colocando assim fim à solução da "geringonça". António Costa não se demitiu de Primeiro-ministro, mas o PR, Marcelo, convocou eleições para clarificar a situação política.

Janeiro de 2022: após uma campanha eleitoral colocando as culpas da queda do Governo no PCP e BE, o PS obteve maioria absoluta nas eleições legislativas e leva a um quase colapso de votação nos anteriores parceiros de coligação, que passaram a ser oposição.

Os ganhos do oportunismo político terminaram a partir daqui, porque aos anos de má governação, agravando os problemas do País, juntaram-se os contínuos escândalos que levaram à demissão de sucessivos Ministros e Secretários de Estado, revelando a dificuldade de António Costa para controlar o crescimento do aparelho partidário e das próprias pessoas que escolheu para a governação. Essa mistura foi fatal e levou à sua recente demissão como Primeiro-ministro, na sequência das investigações do Ministério Público sobre suposta corrupção e tráfico de influências, envolvendo pessoas próximas e uma investigação em paralelo ao próprio Primeiro-ministro.

Ironicamente, a solução governativa teoricamente mais estável possível, a maioria absoluta, foi a mais instável e a que menos tempo durou, pois praticamente o mesmo Governo, desgastado de vários anos de má governação, acabou por ser vítima de si próprio, com inúmeros casos e escândalos que levaram à demissão de mais de uma dezena de governantes.

O que sucedeu é a prova de que a verdadeira garantia de estabilidade política é a boa qualidade das políticas públicas, em benefício da população, exigindo uma economia pujante, capaz de sustentar um Estado Social forte. O seu contrário, a que assistimos nos oito anos de "Costismo", teria de terminar mal. Quem sofre é o povo, que, espero, terá de "abrir os olhos" e escolher políticos que realizem boas políticas e não "políticos ilusionistas".

1.2. Oratória e "ilusionismo político".

A habilidade oratória de António Costa é inegável, como evidenciado por suas intervenções no Parlamento e nos media. Infelizmente para todos nós, essa destreza retórica foi sempre acompanhada por uma notável aptidão para o 'ilusionismo político'. Apresentava, com maestria, dados que aparentavam indicar que estava tudo está bem, quando, na realidade, se tratava apenas de informações parciais positivas. Enquanto uma mão oferecia essa visão otimista, a outra ocultava os problemas reais, ilustrando bem a sua propensão para "ilusionista" político. O facto de alguém que "camufla" as questões fundamentais ter ocupado o cargo de Primeiro-ministro por oito anos, sem cumprir diversas promessas em áreas cruciais, é a mais clara evidência desse 'ilusionismo'.

2. Legado económico assumido - as "contas certas", uma estratégia de ilusionismo.

O slogan das "contas certas" foi a grande estratégia encontrada para, simultaneamente, tentar apagar o "pecado" do Governo PS de Sócrates quase ter levado o Estado à bancarrota e, ao mesmo tempo, tentar "destrunfar" os tradicionais argumentos do PSD, que sempre teve de vir "endireitar as contas" após Governos socialistas terem sido responsáveis pelos vários pedidos de ajuda externa com envolvimento do FMI (1977, 1983 e 2011), implicando sempre dolorosos programas de ajustamento económico.

Primeiro, esclareço que "contas certas" são, por exemplo, 1+1=2, seja em matemática ou em finanças públicas. Outra coisa são contas públicas "boas" e estas são compatíveis com saldos orçamentais positivos ou negativos, dependendo da situação económica ser melhor ou pior, mas sempre salvaguardando, nomeadamente, o necessário investimento público para assegurar o bom funcionamento dos serviços públicos e da economia, tanto no presente como no futuro.

A dita estratégia das "contas certas" - mas más, porque insustentáveis, como mostrarei - de António Costa decorreram do aproveitamento da boleia da retoma económica de 2015-2019, beneficiando das reformas económicas implementadas pelo anterior Governo PSD-CDS, mesmo que algumas delas tenham sido revertidas total ou parcialmente pela "geringonça", e o consequente aumento das receitas fiscais, enquanto as taxas de juro do BCE se mantiveram anormalmente baixas, reduzindo a despesa pública com juros.

Nos anos mais recentes, mesmo com as crises da pandemia e da guerra na Ucrânia, as contas públicas beneficiaram da política monetária ainda mais expansionista do BCE em 2020-2021, e depois da inflação elevada desde 2022, que empolou as receitas fiscais porque o Governo optou por não reduzir a carga fiscal. Note-se que a carga fiscal continuou a subir para máximos históricos, numa altura em que as taxas de juro tiveram uma rápida subida, trazendo grandes dificuldades às famílias neste último ano. A recuperação mais rápida e forte do que o esperado do turismo, beneficiando do aumento extraordinário da procura turística após a pandemia e da imagem de país bonito e longe do conflito na Ucrânia, também ajudou ao aumento das receitas fiscais. A tudo isto acresce o fluxo de fundos comunitários desse 2015, a que se vieram juntar as verbas do PRR.

Os poucos excedentes orçamentais obtidos - um insignificante em 2019 e outro significativo em 2023 - e a redução do rácio da dívida pública recente resultaram, pois, de fatores externos aos Governos de António Costa, mais a política de cativações de investimento, da sua responsabilidade, que é outra imagem de marca da sua governação. No total, cerca de 6 mil milhões de euros de investimento público orçamentados não foram executados, levando ao quase colapso de vários serviços públicos.

3. Real legado socioeconómico de António Costa em alguns números.

3.1. Empobrecimento do país, por falta de reformas económicas, implicando uma cada vez maior dependência do turismo e de fundos europeus, que a partir de 2026 começarão a escassear.

No indicador de nível de vida relativo (PIB per capita em Paridade de Poderes de Compra em percentagem da União Europeia (UE) - dados mais recentes do Eurostat), Portugal desceu de 77,5% da UE em 2015, na 18ª posição em 27 países, para 75,0% em 2021, na 20ª posição, a oitava pior, que se manteve em 2022, apesar de uma recuperação para 77,2%, devido ao crescimento anormalmente elevado do PIB (a refletir o já referido aumento excecional do turismo), o que traduz uma estagnação do nível de vida e a perda de duas posições desde 2015.

Contudo, usando dados mais recentes da população do INE, o nível de vida em 2022 terá sido bem menor, de apenas 76,6% da UE, valor bastante inferior ao de 2015. Pior ainda, as previsões de novembro da Comissão Europeia apontam para que Portugal caia mais uma posição até 2025 (para 21º, ou sétimo pior), ficando ainda mais perto da cauda da Europa em nível de vida.

Resultados melhores em nível de vida exigiriam uma elevação do crescimento potencial da economia em resultado de uma política de reformas estruturais, que estiveram ausentes porque o Primeiro-ministro era assumidamente avesso a reformas, sendo assim esse o seu principal legado na área económica - a inação. Bastou aproveitar as ondas favoráveis da conjuntura e esconder os dados negativos, no âmbito da referida capacidade de "ilusionismo".

A ausência de medidas para tornar a economia mais pujante é, por isso, outra das marcas da governação, sendo disso ilustrativo que uma das primeiras decisões de António Costa enquanto Secretário-geral do PS, logo em novembro de 2014 (antes das eleições de 2015), tenha sido romper o acordo feito entre Seguro e a coligação PSD-CDS para a baixa da taxa de IRC, que visava aumentar a competitividade fiscal.

Uma estratégia reformista adequada, como a levada a cabo pelos Governos de Cavaco Silva, altura em que Portugal mais cresceu e convergiu em nível de vida na Europa, teria permitido contas públicas melhores com menos carga fiscal e mais investimento público, impedindo a degradação dos serviços públicos em áreas cruciais para as famílias, como as que descrevo nos próximos pontos (com apenas alguns dados) - no fundo, contas públicas mais sustentáveis de um ponto de vista económico, mas também social. O péssimo legado estende-se, ainda, a muitas outras áreas, como as infraestruturas (por exemplo, ferrovia, TAP, aeroporto), a administração interna (como a extinção do SEF e a imigração aparentemente descontrolada) ou a defesa nacional, só para referir alguns exemplos.

A falta de reformas económicas, nomeadamente uma política de atração de investimento (nacional e estrangeiro) consistente e não dependente de apoios opacos e casuísticos, que terão contribuído para as investigações da PGR de tráfico de influências e que estiveram na base da queda do Governo, traduziu-se numa economia menos diversificada do que deveria ser. Tal passou a tornar-nos mais dependentes das receitas do turismo, um setor com elevada volatilidade de procura, bem como dos fundos europeus, cuja captação e maximização é também uma das imagens de marca dos Governos de António Costa. Essa estratégia, que está a acabar, é reveladora de uma governação de "mão estendida" e sem rasgo para desenvolver o País de forma decisiva para que não precise de apoios.

O recente "fundo para investimento estruturante pós-2026" criado pelo último Ministro das Finanças não é mais do que o reconhecimento do fim do elevado afluxo de fundos comunitário a partir de 2026 e o pré-anunciado fim do modelo socialista de utilização de benesses "caídas do céu" - em que os fundos europeus são o expoente máximo - para redistribuir pelos principais grupos de votantes e assegurar a próxima reeleição.

3.2. Saúde

Deixo algumas constatações sobre o colapso do SNS que está a afetar as famílias: 1,7 milhões de pessoas sem médico de família, fecho de serviços de urgência por todo o país, falta de equipamentos e consumíveis nos hospitais, fuga de médicos do SNS para o setor privado e para o estrangeiro, e aumento exponencial de seguros privados de saúde.

3.3. Educação

Recorde-se a queda sem precedentes de Portugal nos recentes resultados do inquérito PISA da OCDE, os mais reconhecidos internacionalmente, a que se junta a perda de aulas dos alunos do ensino secundário nos últimos dois anos, na sequência da greve dos professores por melhores condições salariais e de trabalho, que o Governo não solucionou. Sintomaticamente, aumentou expressivamente o número de alunos a frequentar o ensino privado. Acresce que a regra passou a ser a emigração maciça dos nossos estudantes qualificados, logo à saída do Ensino Superior, um capital humano formado pelo País e desaproveitado, beneficiando outros países.

3.4. Habitação

Recordo as enormes dificuldades das famílias, em particular dos jovens, para conseguir pagar uma renda (incluindo os Estudantes) ou crédito bancário para ter habitação própria, mesmo os que dispõe de um rendimento médio. Nenhum das promessas de habitação social de António Costa foi cumprida e o pacote de habitação da última Ministra da Habitação só veio agravar os problemas, ao criar desconfiança no mercado de arrendamento, de alojamento local e de habitação em geral.

4. O último reduto, a "vitimização", também na saída. Vítima da PGR e do PR?

Outra estratégia que atravessou a governação de António Costa, visível nos momentos mais críticos, foi a "vitimização", que poderá ser também considerado outro legado da sua "escola política". Destaca-se o final da "geringonça", em que Costa fez campanha eleitoral como vítima dos parceiros de esquerda para conseguir a maioria absoluta de janeiro de 2022, ou mesmo durante a pandemia, como vítima da "incompreensão" face às medidas tomadas, várias delas sem suporte científico ou mesmo jurídico.

Já mais recentemente, para se defender dos sucessivos casos e da manutenção de Ministros "defuntos politicamente", António Costa foi gerando acrimónias com o PR para, finalmente, se mostrar uma "vítima" aparente da mais alta figura do Estado.

Não é, por isso, de estranhar que, já como Primeiro-ministro cessante, no primeiro dia a liderar um governo de gestão, tenha aparentemente tentado a sua arma de "último recurso", a "vitimização", para "atacar" também os órgãos de Justiça. Não deixa de ser irónico que tenha rejeitado a proposta de um acordo para a reforma da Justiça do anterior líder do PSD, Rui Rio, evitando agora, por isso, usar o argumento de que o sistema funciona supostamente mal.

De facto, parece emergir uma campanha orquestrada de "vitimização" face à conduta da PGR e do PR. Na entrevista de Costa à TVI / CNN despontaram duas palavras novas - "suspeição" e "enxerto" - nessa campanha não declarada, subliminar, que visa apresentar o Primeiro-ministro demissionário como uma "vítima" inocente da PGR e do PR, que merece a nossa compaixão e solidariedade. Tal contraria a informação pública disponível, segundo a qual o Primeiro-ministro se demitiu porque supostamente terá sido apanhado numa conversa onde fez afirmações que foram consideradas como tendo relevância criminal, havendo indícios da prática de crime no exercício das funções. Acresce que o ex-chefe de gabinete já terá reconhecido ao juiz de instrução criminal "a coisa grave" de que os 75 mil euros que mantinha escondidos no seu gabinete em São Bento, e que foram apreendidos nas buscas da Operação Influencer, não tinham sido declarados.

Em suma, o "Costismo" das ilusões penalizou o bem-estar social e promoveu a polarização económica e social em Portugal, agravando as disparidades sociais, territoriais e geracionais. Como se isso não fosse suficiente, levou muitos portugueses, sobretudo jovens, a desistir de viver no nosso País.