Óscar Afonso, Dinheiro Vivo
Estando a terminar a discussão na especialidade do Orçamento de Estado para 2024 na altura em que escrevo estas linhas (dia 27 de novembro), pela informação disponível, parece que será mantida a proposta de "criação um fundo para financiar investimento público, assegurando um fluxo adequado de investimento ao longo do ciclo económico, nomeadamente compensando futuras variações de financiamento comunitário", mencionada no relatório da Proposta de Orçamento inicial.
Na apresentação dessa proposta pelo (ainda) ministro das Finanças foi fornecida informação adicional. Trata-se de um "fundo para investimento estruturante pós-2026" (ou seja, pós-Plano de Recuperação e Resiliência, PRR) "dirigido a investimentos públicos privados" e "financiado com verbas de saldos orçamentais positivos e outras fontes (ex: concessões)" e "que arranca em 2023 com 2000 M€" (milhões de euros), valor que corresponde ao excedente orçamental de 0,8% do PIB previsto para 2023, informação constante do powerpoint da apresentação. O ministro das Finanças acrescentou ainda que o fundo está "dirigido a dar repostas às questões emergentes da transição climática, ao sistema de saúde e de transportes".
Tudo isto porque a Comissão Europeia não se compromete com a criação de um instrumento permanente de apoio aos Estados-membros para suceder ao PRR, defendido com grande ênfase pelo (ainda) primeiro-ministro, António Costa, em Bruxelas, daí que o Governo tenha considerado necessário começar a construir este mecanismo nacional de apoio ao investimento.
Que eu saiba, apesar de algum debate inicial nos media sobre a ideia de criação do referido fundo, com opiniões a favor e contra por parte de alguns especialistas, o assunto não parece ter sido debatido com a profundidade devida no Parlamento - tanto no debate na generalidade como no da especialidade -, ou pelo menos essa discussão não foi realçada pela informação dos media que consegui acompanhar em relação a esta matéria.
Em primeiro lugar, merece reflexão a justificação inicial dada para a criação do fundo, que se prende com a possibilidade de não haver um prolongamento do PRR após 2026.
Trata-se de um argumento bastante estranho, dado o contexto muito específico de surgimento do PRR, cujo nome e origem apontam para a recuperação e maior resiliência das economias europeias na sequência da crise pandémica, embora na versão final, após reprogramação, a Comissão tenha permitido alterações face ao contexto imposto pela guerra na Ucrânia.
Ou seja, mesmo que a estruturação futura dos fundos europeus tradicionais - i.e., o sucessor do Portugal 2030, no nosso caso - se faça mais em linha no novo modelo NextGenEU adotado pela Comissão, em que se se insere o PRR, o que até tem sido falado nos bastidores de Bruxelas, mas não está decidido, a conjugação de verbas maciças do PRR e PT 2030 é irrepetível.
Na verdade, como tenho vindo a apontar noutros artigos, o NextGenEU foi financiado com endividamento da Comissão Europeia por conta de orçamentos futuros, pelo que terá de ser pago e isso deixará logo à partida menos apoios no futuro, a que se juntam novas necessidades, como a reconstrução da Ucrânia, o aumento da despesa militar europeia, o apoio a refugiados, a adaptação às alterações climáticas, a provável entrada de novos países, etc..
A não ser que haja um aumento da contribuição dos países contribuintes líquidos ou o recurso a fontes de receitas alternativas (por exemplo, taxas setoriais a nível europeu), de difícil concretização, de futuro haverá menos apoios para distribuir e os que existirem tenderão a privilegiar países elegíveis que forem recetores há menos tempo (em particular novos entrantes). Previsivelmente, Portugal terá, pois, acesso a muito menos fundos europeus do que no passado e, em particular, até 2026 como foi implicitamente reconhecido pelo (ainda) ministro das Finanças quando justificou o fundo com o "risco de termos muito menos verbas para investimento público" no futuro, no caso de "uma queda abrupta das verbas que venhamos a receber" ou se não houver "o sucessor do PRR".
Tal significará o fim do modelo insustentável dos dois últimos governos socialistas, focado:
(i) em captar o máximo de fundos comunitários para satisfazer os lobbies mais importantes, sobretudo aqueles com maior peso eleitoral, o que é crucial atendendo aos pilares seguintes.
(ii) na manutenção do status quo, evitando desagradar a alguns setores da Sociedade, o que implica também deixar de fazer reformas estruturais (incluindo no próprio Estado) - às quais o ainda primeiro-ministro se mostrou assumidamente avesso - promotoras de um maior potencial de crescimento da economia, essencial para sustentar o Estado social de bem-estar.
(iii) na consolidação orçamental e redução do rácio de dívida pública no PIB, o que, em si mesmo, é positivo, mas não do modo como foi conseguido. Por um lado, à custa do enfraquecimento do PIB potencial com a redução do investimento público (incluindo 6 mil milhões de euros por executar desde 2016, a refletir a política de cativações), que penalizou a economia e levou à degradação dos serviços públicos - sobretudo na saúde e na educação, mas também noutras áreas. Por outro lado, beneficiando de fatores extraordinários de origem externa (redução dos juros da dívida pública com as taxas de juro zero do BCE até 2021 e empolamento das receitas fiscais devido à elevada inflação em 2022 e 2023, à custa da perda de poder de compra dos contribuintes), a que se juntou o maior crescimento do PIB desde então à boleia do turismo, beneficiado da imagem de Portugal como destino bonito e seguro (longe do conflito na Ucrânia) e do aumento da procura turística após o fim da pandemia.
Note-se que o slogan das "contas certas" foi a estratégia encontrada para procurar "purgar" o anátema do governo socialista de José Sócrates ter levado ao pedido de ajuda externa em 2010. Como as verdadeiras "contas certas" existem com saldo positivo ou negativo, desde que as receitas e despesas estejam corretamente apuradas, já se vê bem a falta de rigor em matéria orçamental por detrás do infeliz slogan. Para além das contas terem de ser obviamente sempre certas, o que Portugal precisa é de "contas sustentáveis", capazes de suportar um Estado social de bem-estar que melhore as condições de vida da população. Isso só se faz com reformas económicas que aumentem o potencial de crescimento da economia, incluindo uma reforma do próprio Estado.
Passado o boom do turismo - que já contribuiu para a queda em cadeia do PIB no 3.º trimestre -, se nada for feito de diferente, Portugal retomará um baixo crescimento económico (em linha com o seu potencial) e continuará a perder posições em nível no contexto europeu, a caminho da cauda da Europa.
A degradação dos serviços públicos continuará a agravar-se se não houver reformas, pois com menor crescimento económico haverá menos receitas fiscais e taxas de juro mais altas (logo mais despesa com juros).
A solução socialista está confirmada e passa por meter mais dinheiro em cima dos problemas, atenuando-os, sem, no entanto, os resolver. A prazo, tal implica défice público e o fim das ditas "contas certas" socialistas ou, para se ser mais rigoroso na terminologia, o fim das "contas equilibradas".
É, por isso, que tenho vindo a argumentar que a verdadeira estabilidade política decorre da qualidade das políticas públicas. Ou seja, o governo estaria sempre "a prazo" com as políticas seguidas.
O fim do modelo socialista acima descrito está, por isso, espelhado no referido fundo de investimentos públicos proposto pelo (quase) defunto governo, não só pelo "grito de alerta" do ministro das Finanças às hostes do PS e ao País de que os fundos europeus poderão estar a acabar, mas também porque, pelas razões já aduzidas, muito provavelmente apenas iria cair no fundo o excedente de 2023 (logo, pouco mais de 2 mil milhões de euros). Resta saber que investimento estruturante seria possível realizar com esse valor. O novo aeroporto, por exemplo, não seria de certeza, pois mantendo a trajetória socialista, mesmo em 2024, seria já difícil manter o excedente inicialmente previsto em face do menor crescimento económico e das medidas eleitoralistas entretanto inseridas na especialidade.
Após a análise das razões para a criação do Fundo, o principal foco deste artigo, deixo também notas adicionais que apontam para a sua extinção a prazo, independentemente do governo que sair das próximas eleições, que se espera ponha rapidamente fim ao modelo socialista.
Na sua apreciação da Proposta de Orçamento do Estado de 2024, o Conselho de Finanças Públicas (CFP) faz notar que "o cumprimento estrito [da Lei de Enquadramento Orçamental] (...) obriga a que necessariamente qualquer excedente orçamental seja canalizado para a redução da dívida pública, enquanto considerada excessiva. Só depois haverá espaço orçamental para a criação de uma almofada financeira de estabilização".
Em linha com as ideias expressas acima, o CFP acrescenta que "a capacidade para criar um espaço orçamental sólido que permita essa gestão cíclica da política orçamental reflete, por fim, a capacidade de combinar, de forma virtuosa, políticas estruturais orientadas para o crescimento económico (...) com políticas de melhoria institucional acomodatícias das primeiras. Entre nós, tarda em concretizar a reforma do sistema orçamental em articulação com a (tão almejada) reforma da Administração Pública."
Destas afirmações do CFP decorre que excedentes orçamentais devem servir para abater à dívida pública até que deixe de ser excessiva, deixando ainda implícito que dificilmente haverá excedente orçamentais de forma consistente sem reformas estruturais orientadas para o crescimento económico.
Após esta análise contundente do CFP, a minha estranheza na insistência da proposta de constituição do Fundo na versão final do Orçamento - caso não tenha sido entretanto retirada - será ainda maior atendendo a que o (ainda) ministro das Finanças na sua apresentação apontou para a utilização do fundo em investimentos públicos e privados e o atual governo socialista foi afastado por suspeitas de, no mínimo, tráfico de influências relacionado com investimentos público-privados avultados e supostamente também "estruturantes".
Ou seja, dada a pouca informação fornecida sobre o fundo (que procurei sintetizar acima), nomeadamente qual a aplicação imediata dos cerca de 2 mil milhões de euros e, em particular, o detalhe do modelo de participação dos privados e dos setores considerados estruturantes, as suspeitas de que o risco de tráfico de influências persista no futuro é grande.