Marcus Braga e Pedro Cavalcante, Estadão

É recorrente a eclosão de novos conceitos e princípios no campo da administração que reverberam na agenda governamental com implicações diretas nas estruturas das organizações e nas políticas públicas, como também no meio acadêmico.

A bola da vez agora é a integridade, o mais novo conceito mágico de gestão[1], que possui uma miríade de definições com alta carga de juízo de valor e positividade. Isso, em certa medida, atrapalha a capacidade dos analistas em definir precisamente seu significado e se aprofundar nas suas limitações. Diante da atual priorização da temática de integridade púbica, torna-se fundamental avançarmos na construção de conhecimento científico aplicado, direcionado a ampliar o entendimento do conceito, naturalmente afetado pelas diversas e dinâmicas transformações em curso e, dessa forma, qualificar esse debate no âmbito do setor público.

Integridade pública não é uma novidade, embora venha passando por diversas modificações nos últimos anos. Leo Huberts a define como "a conformidade com valores morais e normas relevantes"[2], que tende a variar de acordo com o contexto e pode ser atribuído tanto a indivíduos quanto a organizações. Considerando a relação entre a promoção de integridade com a prosperidade, a justiça social e o desenvolvimento econômico dos países, organismos multilaterais vêm reforçando essa questão. A Organização de Cooperação de Desenvolvimento Econômico (OCDE), por exemplo, tem ampliado o entendimento, definindo como o "alinhamento consistente e à adesão de valores, princípios e normas éticas comuns para sustentar e priorizar o interesse público sobre os interesses privados no setor público"[3]. Nessa perspectiva mais ampla, integridade na gestão pública não se restringe apenas ao combate à corrupção, na medida em que incorpora também as dimensões de transparência, dados abertos, prevenção à conflito de interesses etc.

Essa crescente complexificação repercute em um conjunto de medidas e normativos de órgãos de controle, mas também de outros setores do governo. O gráfico abaixo ilustra parte dessa evolução recente na esfera federal, onde é possível observar não apenas o protagonismo da CGU na estruturação do Sistema de Integridade, Transparência e Acesso à Informação (Sitai), como também o Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania (MDHC) com o seu programa Integra+MDHC[4], e o Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGISP), com o Pro-Integridade[5]. Esses passaram a fomentar a agenda da integridade nas suas políticas finalísticas, adicionando outras diretrizes, tais como o respeito aos direitos humanos, diversidade e participação social, em uma abordagem ampliada de integridade.


Fonte: elaboração própria

Nesse contexto, é preciso decifrar a esfinge da integridade no âmbito governamental, pois como dito na lenda, ao não se fazer isso, ela pode nos devorar. Existem questões complexas na implementação dessa agenda que demandam debate qualificado e estudos empíricos, e que abordem aspectos de efetividade dessas iniciativas, bem como a relação desse tema com outros conceitos mágicos já mais sedimentados na realidade brasileira. Não obstante, um segmento vem tendo uma participação acanhada: a academia. Em uma rápida pesquisa na plataforma Spell de periódicos da Anpad[6], é evidente o caráter embrionário das publicações de integridade quando comparado aos demais conceitos mágicos da administração. Nos últimos vinte anos, enquanto governança, inovação e transparência possuem 219, 179 e 162 trabalhos publicados respectivamente, integridade pública foi objeto de apenas 28 estudos.

No sentido de contribuir para reversão desse cenário, duas iniciativas foram recentemente lançadas. A primeira é a chamada para dossiê especial sobre Integridade Pública da Revista da CGU[7], que convida acadêmicos para colaborarem com reflexões teóricas, pesquisas empíricas (quantitativas e qualitativas) e avaliações aplicadas do tema, sob a ótica da perspectiva abrangente do conceito, incluindo o foco na promoção da diversidade racial e de gênero, e os efeitos da adoção de novas tecnologias nas políticas públicas. Além disso, estão abertas submissões para o programa Integridade em Debate, parceria entre a CGU e a Enap, que concede bolsas de pesquisa para a produção de policy papers sobre diferentes dimensões e questões latentes da temática[8].

Em síntese, torna-se fundamental o aprofundamento dessa linha de pesquisa de modo a qualificar o processo decisório e adequar essas visões ao um mundo cada vez mais 'em tempo real' e de políticas públicas baseadas em evidências. Iniciativas como essas refletem a crescente preocupação da sociedade e dos órgãos de controle e gestão em fortalecer as capacidades estatais no sentido de combater a corrupção, com também propiciar as bases para a administração pública cada vez mais efetiva, participativa e inclusiva e, dessa forma, elevar a confiança cidadã, pilar da democracia.

Notas

[1] Hupe, P. & Pollitt, C. The magic of good governance. Policy and Society, v. 13, n. 5, p. 641-658, 2010.

[2] Huberts, L. The Integrity of Governance, What It Is, What We Know, What Is Done, and Where to Go. Palgrave Macmillan London, 2014. https://doi.org/10.1057/9781137380814.