António João Maia, Jornal i online
A corrupção provoca sempre danosidade sobre a credibilidade das instituições, sobre a qualidade do exercício da sua função, sobre os custos do seu funcionamento e sobre o elo de confiança junto dos cidadãos
Muitas vezes os meus alunos, ou mesmo os formandos das ações formativas que tenho oportunidade de dinamizar sobre ética, integridade, conflitos de interesses, riscos de fraude e corrupção nas organizações e sua prevenção, questionam-me sobre se “em Portugal há mais corrupção agora do que havia no passado, por exemplo há cinquenta anos?”.
A essa pergunta costumo responder que “desconheço se efetivamente os casos de corrupção em Portugal, ou em qualquer país do mundo, são mais frequentes agora do que em algum tempo do passado, nomeadamente há cinquenta anos”, acrescentado que “o mais provável seja que ninguém consiga responder adequadamente à questão, apesar de ser uma evidência clara que atualmente há mais notícias de corrupção e de suspeitas de corrupção do que no passado”.
E, logo de seguida, vem a questão “e a existência de um maior número de notícias é um mau ou um bom sinal?”. Respondo que “é as duas coisas! É mau, por significar que o problema existe com a negatividade própria que o caracteriza. E é bom na medida em que a mediatização da corrupção é reconhecidamente um elemento importante para confrontar a sociedade, os cidadãos em geral e os decisores políticos, com o problema, e para nos posicionar num ponto de maior exigência para que sejam estabelecidas medidas de cuidado, prevenção e repressão sobre ele”.
O diálogo evoluiu depois para a exploração e aprofundamento de um ou outro ponto que suscite mais interesse à plateia, ou que se ajuste mais aos conteúdos formativos que estejam a ser abordados na ocasião.
Da evolução desses diálogos e das reflexões que têm sido suscitadas, gostaria de destacar e partilhar aqui os seguintes elementos:
- Não é possível saber se o número de casos de corrupção é superior ou inferior ao que tenha sido no passado, desde logo por não ser possível saber o número efetivo de práticas desta natureza em cada momento. De facto, pela sua natureza, o problema da corrupção apresenta-se tendencialmente oculto. Com elevadas “cifras negras”, que se explicam por fatores diversos, como sejam: 1) quem pratica estes atos procurará sempre ter todos os cuidados para os ocultar, incluindo a destruição das evidências e provas, para não ser detetado, nem denunciado, nem punido, no caso de, por qualquer circunstância fortuita, ocorrer uma investigação; 2) a tendência para a denúncia da corrupção também parece ser baixa, não tanto por concordância com os factos ou conluio com o(s) autor(es), mas sobretudo por receio de represálias, e também porque, as mais de vezes, o interesse e o património afetado (de natureza pública), independentemente do seu valor financeiro ou material, não é percecionado como justificativo para a adoção de uma atitude cívica dessa natureza - a de denunciar;
- O sucesso de uma estratégia de ocultação da corrupção permite, ao autor ou autora dos atos, garantir a manutenção do índice da sua reputação social aos olhos do seu circulo de familiares, amigos e colegas, e, sobretudo, a manutenção de formas ilícitas e graves (também conhecidos por “esquemas de corrupção”) de financiamento futuro, como sejam por exemplo: 1) a continuação do recebimento de subornos em sucessivos contratos públicos em que participe, no âmbito das suas funções - em departamentos ou áreas funcionais envolvidas na contratação pública; 2) a continuação da apropriação de verbas dos serviços onde se exercem funções, para financiamento de projetos particulares ou familiares (como férias, a compra de casa ou a troca de automóvel), ocultando essas práticas com a apresentação de documentação falsa ou forjada para justificar custos (como por exemplo a apresentação de mapas de ajudas de custo com valores inflacionados, faturas de aquisição de serviços ou equipamentos e a sua manutenção adulterados e falsificados, anulação de valores cobrados após a efetivação da sua cobrança, simples alterações contabilísticas, etc.), gerando deste modo o diferencial que se traduz nos valores a apropriar; 3) a continuação da utilização, em estrito benefício próprio ou dos interesses da família ou de amigos, de bens e equipamentos de que se dispõe ou tem acesso por força das funções exercidas (como por exemplo a utilização de veículos de serviço para levar os filhos à escola, para fazer compras, para passear com a família, para deslocações em férias, ou simplesmente para ir almoçar com um amigo que se encontra a centenas de quilómetros, com a agravante de se associarem os custos de combustível e portagens, e, como se referiu anteriormente, com o acréscimo do recebimento dos correspondentes valores de ajudas de custo, como se tudo afinal tivesse sido realizado no estrito cumprimento dos deveres funcionais);
- Nos casos de suspeição e denúncia, a probabilidade da punição pela prática deste tipo de crimes é baixa, porque, como se referiu anteriormente, quem os pratica tem grande cuidado na eliminação das evidências e das provas. Estes cuidados de eliminação de provas compreendem, por exemplo: 1) a utilização abusiva de passwords dos colegas para acesso aos sistemas informáticos, por exemplo para conhecer informação privilegiada relativamente a um amigo ou familiar, ou simplesmente para “vender” essa informação a quem interesse, para anular registos de valores cobrados anteriormente pelos serviços, ou ainda para alterar registos informativos ou contabilísticos; 2) não receber subornos diretamente nas contas bancárias tituladas por si ou familiares, preferindo sempre receber em numerário, para as situações de subornos de valores menores (situação mais comum nas situações de corrupção administrativa), ou, para os casos de grande corrupção, ou de corrupção política, a utilização dos circuitos financeiros internacionais próprios da grande criminalidade económica e financeira organizada, que incluem o recurso a empresas-fantasma e a sistemas bancários, que operam em zonas offshore, e que incluem igualmente a componente do branqueamento de capitais sobre os valores em causa;
- Há 50 anos ou mais, particularmente em Portugal, o sistema político vigente controlava a comunicação social e os conteúdos que podiam ser divulgados, através de uma instituição de muito má memória, que eram os serviços de censura (os funcionários do “lápis vermelho”), e como toda essa circunstância permitia controlar, limitar e barrar a divulgação de qualquer notícia de corrupção, nomeadamente quando envolvessem os lideres políticos e os grandes negócios do Estado e da gestão pública - a este propósito são de referir os estudos académicos que apontam para a utilidade de os sistemas políticos assegurarem a liberdade de imprensa precisamente como forma de potenciar a desocultação da corrupção, da grande criminalidade económica, financeira e fiscal e do branqueamento de capitais;
- As formas mais perversas que a corrupção pode assumir são as que decorrem de circunstâncias legalmente sustentadas, ou seja a denominada corrupção legalizada, como seja por exemplo: 1) a atribuição de subsídios a quem não tem mérito nem competências para os receber, e que deles beneficia unicamente por ser familiar ou amigo de quem tem poderes para os atribuir; 2) a utilização de materiais e equipamentos dos serviços, exclusivamente para fins de interesse particular, com o conhecimento e a devida autorização hierárquica para esse fim; 3) a designação de familiares e amigos para determinadas funções ou lugares, com maior ou menor responsabilidade, sem que o designado tenha as competências devidas, por vezes nem as mínimas, para o exercício dessa função, com o único propósito de garantir o usufruto de um salário sem o correspondente exercício da função; 4) designação de um familiar ou amigo, em regime de substituição por urgente conveniência de serviço, para exercer uma determinada função, com maior ou menor responsabilidade, até se formalizar o correspondente procedimento de seleção do futuro nomeado, garantindo assim que, quando esse procedimento de seleção for operado, aquele ou aquela que foi previamente designado venha a apresentar um currículo imbatível face a qualquer outro candidato que se apresente ao lugar;
- As situações mais frequentemente mediatizadas por associação à corrupção envolvem sobretudo o exercício de funções e de poderes políticos. Esta evidência também tem sido objeto de estudos académicos, que têm concluído precisamente pelo maior potencial de mediatização de casos de corrupção quando envolvam o exercício da função política, bem como de destacadas figuras da vida social e o universo dos grandes negócios do Estado. Claro que a corrupção não ocorre só nestes universos, como se procurou ilustrar com os exemplos anteriores. É até muito provável que haja muitos mais casos envolvendo dirigentes e funcionários administrativos, dado o número de pessoas que operam neste nível da gestão do Estado (de acordo com os dados mais recentes da Direção Geral da Administração e do Emprego Público, em 30 de junho de 2023, o número de trabalhadores das administrações públicas situou-se era de 745 707 pessoas). Porém, e pelos elementos já indicados, são situações da esfera política que acabam por surgir maioritariamente expostas no plano mediático. Por si só, este elemento pode ajudar sustentar uma certa perceção da generalidade dos cidadãos de que existe mais corrupção ao nível da função política do que noutra qualquer área da gestão do Estado, ou seja, por outra palavras, que os políticos são potencialmente mais propensos à corrupção do que a generalidade dos funcionários do Estado e até dos demais cidadãos.
Os elementos expostos, através dos quais se ilustraram diversas possíveis práticas corruptas, permitem perceber que, independentemente da forma e do nível de gestão do Estado onde se verifique, a corrupção provoca sempre danosidade sobre a credibilidade das instituições, sobre a qualidade do exercício da sua função, sobre os custos do seu funcionamento e sobre o elo de confiança junto dos cidadãos.
Por sua vez, a corrupção política, muito em resultado do processo de mediatização que lhe está associado, suscita danosidade sobre a perceção da qualidade dos políticos, reduz os índices de confiança na relação entre cidadãos e lideres políticos, o que explicará, pelo menos em parte, os crescentes índices de abstenção eleitoral, como se verifica através dos dados dados da Portada para as eleições legislativas.
Mas o efeito pior que pode decorrer desta circunstância em particular, da perceção de elevada corrupção ao nível da função política, é o de pessoas com perfil e competências adequadas para o exercício de funções políticas se afastarem deliberadamente dessas opções. Por receio de virem posteriormente a estar envolvidos em suspeições fortemente mediatizadas por uma qualquer simples decisão menos clara. Porque os adversários políticos criem estratégias e narrativas deliberadas no mesmo sentido. E também porque, neste enquadramento e como é argumentado por muitos, as suas competências e conhecimentos técnicos lhes permitem auferir salários bem mais confortáveis no setor privado relativamente aos salários que alcançariam no exercício de funções políticas.
Neste enquadramento, o risco de virmos a ser governados cada vez mais por pessoas menos competentes, tanto do ponto de vista técnico como do ponto de vista de integridade é uma possibilidade real, com algum grau de probabilidade de acontecer, o que, a verificar-se, se traduzirá verdadeiramente num problema maior para o futuro da gestão política do Estado e dos nossos interesses enquanto cidadãos.