André Inácio, Jornal i online

Se as entidades não promoverem boas práticas, não diligenciarem a adesão dos colaboradores e, sobretudo, não colocarem pessoas de isenção demonstrada em vez de “gente de confiança” à frente do tratamento desses canais, ficaremos mais uma vez no domínio das “boas intenções”

A criminalidade económico-financeira em geral, a corrupção e a fraude em particular, minam as economias, delapidam os cofres dos Estados e são fator de desigualdade social e descredibilização internacional. Num momento em que as entidades internacionais, da Procuradoria Europeia, a quem cumpre investigar, instaurar ações penais e levar a julgamento os autores de infrações lesivas dos interesses financeiros da EU, até à Transparência Internacional, organização não governamental que promove medidas contra crimes corporativos e corrupção  no plano internacional, evidenciam preocupação com a aparente captura da Administração Pública e das grandes empresas em Portugal por parte de grupos de interesse, exige-se o reforço de técnicas e meios de investigação, sustentado num quadro jurídico apropriado.

Nesta luta desigual todos os cidadãos devem estar/ser envolvidos, sendo que as pessoas de bem não tem, não devem ter, o seu nome associado a más práticas das organizações onde laboram, tendo, para além do direito à indignação, o dever de denunciar. É nesse sentido que a Lei nº 93/2021, que estabelece o regime geral de proteção de denunciantes de infrações, transpondo para o ordenamento nacional a Diretiva (UE) 2019/1937 do Parlamento Europeu e do Conselho, pode (deve) constituir-se como uma importante ferramenta na prevenção e combate a este tipo de ilícito.

O recurso a fontes anónimas já era utilizado em sede de pré-inquérito judicial com resultados evidentes na prevenção e combate à criminalidade económico-financeira. A sua aplicação no seio da atividade empresarial, por via da implementação de canais de denúncia, que devem assegurar o anonimato da “fonte”, constitui mais um importante passo. Porém, para que seja verdadeiramente eficaz existe ainda um longo caminho a percorrer, ganhando a confiança dos cidadãos, garantindo a sua efetiva anonimidade bem como a inexistência de represálias pelo seu contributo para a efetivação do Estado de Direito.

Se é verdade que a implementação de códigos de conduta no seio das organizações privadas, a acrescer ao já existente nas públicas, corresponde a uma natural evolução do teor do art.º 8º da Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção, de 31 de outubro de 2003, não é menos verdade que, para que os canais de denúncia sejam eficazes enquanto instrumentos de prevenção e combate à corrupção, terá de se garantir de forma absoluta a proteção dos denunciantes.

O cidadão depende do seu emprego como forma de subsistência, logo precisa de confiar no mecanismo de denúncia existente na sua entidade patronal bem como na forma como está implementado, assim como nas pessoas que o operacionalizam. Sem isso e com o histórico de modesto sucesso no combate à criminalidade económico-financeira que persiste em Portugal, subsistirá sempre o receio mais do que justificado de ser exposto e prejudicado enquanto os prevaricadores não sofrem qualquer consequência.

Sucede que as entidades públicas e privadas vêm nomeando para a gestão dos respetivos canais de denúncia colaboradores “de confiança” das administrações, não promovem sessões de esclarecimento sobre o seu funcionamento junto dos seus trabalhadores, nem potenciam um clima de transparência que una os colaboradores em torno de uma causa comum. Paralelamente as “Comissões de Ética” dessas entidades ignoram ou desvalorizam os conteúdos que lhes sejam diretamente dirigidos.

Ora, se as entidades não promoverem boas práticas, não diligenciarem a adesão dos colaboradores e, sobretudo, não colocarem pessoas de isenção demonstrada em vez de “gente de confiança” à frente do tratamento desses canais, ficaremos mais uma vez no domínio das “boas intenções”, tornando-se a Lei nº 93/2021 em mais um instrumento jurídico “simbólico”, sem consequências efetivas, logo, sem utilidade prática.

Naturalmente que todo este quadro de entropia conduz a que o trabalhador se veja dividido entre o seu dever de cidadania, denunciando pelos canais internos qualquer suspeição de prática ilícita ocorrida no seio da entidade e o receio, mais que fundamentado, de sofrer represálias pelo facto.

Cumpre-nos enquanto cidadãos, de forma individual, no seio das estruturas que integramos, profissionalmente e das entidades administrativas com quem contactamos, exigir mais, exercendo o nosso direito à indignação e fazendo valer o direito à resistência perante os enormes atropelos à Democracia.

Os mecanismos legais e o suporte constitucional existem em Portugal. Ainda vamos a tempo, mas será que efetivamente se quer?