Rute Serra, Expresso online

Com suporte na hábil norma jurídica introduzida no Orçamento Geral do Estado, votada favoravelmente inclusive por aqueles que, na oposição, brandem agora a espada da transparência, 82% do total da contratação pública para efetuar este evento

Ao contrário do que os mais elementares princípios de gestão pública exigem, e como mestres que somos da arte da improvisação, ao termos assistido impávidos à natural (e sempre ávida) inexorável passagem do tempo (aliás dilatado, atendendo à situação pandémica), sem concretizar atempada e eficazmente as várias fases do projeto, através de uma estrutura inequívoca de comando que se responsabilizasse pelo sucesso deste, eis que, no que à condicionante financeira respeita, desatámos a contratar freneticamente, com recurso a, pois claro, ajustes diretos.

E foi assim que, com suporte na hábil norma jurídica introduzida no Orçamento Geral do Estado (artigo 118.º da Lei n.º 24-D/2022), votada favoravelmente inclusive por aqueles que, na oposição, brandem agora a espada da transparência, 82% do total da contratação pública para efetuar este evento foi realizada através de ajuste direto, em especial a 10 singelas empresas, as quais arrecadaram cerca de 85% do valor total contratado.

Esta constatação teria o interesse que lhe quiséssemos dar, malgrado uma panóplia (também ela inexorável) de alertas e proclamações públicas (bem prega Frei Tomás, faz o que ele diz, não faças o que ele faz) disseminadas em:

  1. Estratégia Nacional Anticorrupção 2020-2024/Regime Geral de Prevenção da Corrupção: “as entidades públicas … adotam as medidas que, de acordo com as circunstâncias, se revelem adequadas e viáveis no sentido de favorecer a concorrência na contratação pública e de eliminar constrangimentos administrativos à mesma, desincentivando o recurso ao ajuste direto”;
  2. “Acompanhamento da Contratação Pública abrangida pelas Medidas Especiais previstas na Lei n.º 30/2021”, Tribunal de Contas: “o risco [de fraude e de corrupção] aumenta quando os processos de formação dos contratos não são concorrenciais”;
  3. Recomendações de 2015 e 2019 do Conselho de Prevenção da Corrupção sobre prevenção de riscos de corrupção na contratação pública;
  4. Relatório anual de contratação pública em Portugal 2021, IMPIC: “o peso dos valores contratuais [de ajustes diretos] comunicados ao portal BASE representou 6,40% do PIB, que face ao ano anterior representa um acréscimo de 1,19 pp. Dos contratos celebrados durante o ano de 2021, o tipo de procedimento a que se recorreu com maior frequência foi o ajuste direto, representando 53,2% do número total de procedimentos”, e
  5. A lista, não fosse tornar-se fastidiosa, podia continuar.

É facto unanimemente considerado que o recurso (excessivo e indevidamente justificado) a ajustes diretos na contratação pública constitui um risco sério de distorção da transparência administrativa, favorece a despesa pública desnecessária, alimenta os conflitos de interesses e carbura lentamente a ordem jurídica democrática.

Termino como comecei citando Sua Santidade o Papa Francisco: “Não sejam patrões clérigos de Estado, mas pastores do povo de Deus. Que a Igreja seja sempre lugar de misericórdia e esperança, onde cada um possa ser acolhido, amado e perdoado”.