Jorge Fonseca de Almeida, Dinheiro Vivo
Os últimos dias e, principalmente, noites têm sido marcados por grandes manifestações dos franceses e imigrantes racializados, forte repressão policial, com uso de veículos blindados, drones e mais de uma centena de milhares de polícias armados, e de resistência violenta, no que é um típico levantamento popular.
A comunicação social francesa, numa prova de incompreensão do que se passa, classifica os manifestantes de vândalos. Mas haverá tantos vândalos em França? O que gera a violência destas manifestações?
A França tem tido nos últimos meses enormes manifestações, algumas com milhões de pessoas nas ruas, contra o aumento da idade da reforma. Essas manifestações foram, no essencial, pacíficas. Muitos dos jovens que se levantaram nos últimos dias também participaram nas manifestações sindicais pela manutenção da idade da reforma. O que é que distingue, então, estas duas manifestações?
É que a manifestação pela idade da reforma é uma luta económica, uma luta por uma melhor repartição da riqueza social, uma luta por algo que sendo importante representa apenas 5% mais de tempo de trabalho ao longo da vida. Tempo de trabalho que pode ser compensado com diminuição de horas semanais, com aumento dos salários, com mil e um outros ganhos. Nada de profundamente essencial está em jogo.
O levantamento popular dos jovens tem outra natureza. O que está em jogo é a sua Vida. O que está em jogo é normalização do assassinato de jovens racializados pela Polícia. Por isso a resistência perante a mais forte repressão policial. Por isso a resistência apesar das centenas de prisões diárias. Os jovens sentem e sabem que se deixarem estes crimes passar impunes a Polícia, que já os acedia continuamente com buscas, revistas, agressões, assassinatos ocasionais, vai continuar a sua escalada de violência contra eles. Vai continuar a matá-los por motivos fúteis como infrações de trânsito, a matá-los por dá cá aquela palha. Por isso a fúria, por isso os carros virados, as lojas queimadas.
O jornal Le Monde relata hoje mesmo que a Polícia matou outro jovem aquando de outro controlo de trânsito, desta feita um rapaz guineense de 19 anos (ver aqui).
É, pois, a diferença entre a luta económica por um pouco mais de conforto e a luta, literalmente, pela Vida que explica a diferença de combatividade e violência destes dois tipos de manifestação.
Quando a nossa Vida está ameaçada, quando nos sentimos em perigo de morte, naturalmente, reagimos com mais veemência, com mais energia, com mais destemor. E é correto, porque temos um dever para com nós mesmos de preservar a nossa Vida e a dos nossos. O direito à Vida é o mais importante de todos os Direitos e deve ser defendido a todo o custo.
Não se trata, então, de vandalismo mas da espontânea e dura luta pela sobrevivência física, pelo simples direito de existir, pela Vida Humana. Para não ser a próxima vítima de uma operação de trânsito.
Quem não é racializado não corre esse risco de morte, não teme ser morto pela Polícia em qualquer operação stop e, por isso, muitos não compreendem a violência que se tem verificado. É tempo de abrir os olhos.
Existem igualmente razões sociais, económicas e de racismo estrutural na sociedade francesa que explicam a situação dos jovens franceses e imigrantes racializados. Essas razões que abordei noutro artigo (ver aqui) explicam também a rotina da brutalidade policial quotidiana que despoletou estes acontecimentos.
Mas a violência destas manifestações têm uma razão, tem uma raiz. É a luta pela VIDA, para que a Polícia não tenha uma licença de matar jovens racializados.
E não nos enganemos. Em Portugal a continuar o caminho que seguimos podemos assistir a levantamentos como este. É preciso mudar de políticas.