Óscar Afonso, Expresso online

Ao contrário dos países do norte da Europa, em que a fuga aos impostos é vista muito negativamente pela sociedade, em Portugal celebramos aquele que consegue enganar mais o Estado – visto como vilão porque absorve uma boa parte dos nossos recursos e o faz ineficientemente –, mas, no fundo, o Estado somos todos nós, pelo que o resultado final é menos recursos para a saúde e educação, nomeadamente, o que penaliza sobretudo os mais pobres

No passado mês de maio, a Faculdade de Economia do Porto apresentou um estudo, do qual sou autor, que estima num máximo de quase 35% do PIB o peso da economia paralela (em 2022) ou, dito de maneira mais formal, a Economia Não Registada (ENR). Tal representa cerca de 30% da divida pública, seis orçamentos da saúde e oito orçamentos da educação (todos os níveis de ensino), constituindo um travão a um maior desenvolvimento económico e social do país.

O elevado peso da fiscalidade em Portugal, com uma carga fiscal num máximo histórico (36,4% em 2022) e o quinto maior esforço fiscal da União Europeia (indicador que relativiza a carga fiscal pelo nível de vida, enquanto medida da capacidade contributiva dos países), 17% acima da média europeia, é uma das principais causas para a trajetória ascendente do peso da ENR em Portugal, sobretudo ao nível dos impostos diretos e de contribuições para a segurança social, e, em menor medida, de impostos indiretos.

Por outro lado, a carga fiscal excessiva não tem sido suficiente – dado que foi acompanhada de uma forte subida do rácio da dívida pública neste milénio, ainda o terceiro maior da UE, apesar do recuo recente – para financiar um Estado social ineficiente (Portugal é um dos países da UE com maior risco de pobreza e desigualdade), o que agrava duplamente o peso da ENR, pois as prestações sociais e subsídios, sobretudo se bem dirigidos, ajudam a reduzir a economia paralela, ao contrário da carga fiscal. Os países mais avançados tendem a registar pesos menores de ENR, podendo servir como referência de melhores práticas.

Mais do que repetir as conclusões do estudo, que mereceu uma ampla divulgação nos media (incluindo um artigo aqui no jornal Expresso), importa sensibilizar as pessoas para os fenómenos que a ENR comporta (uns mais problemáticos que outros) e o que cada um pode fazer para evitar a proliferação dos principais problemas, tanto a nível individual, como a nível coletivo, neste caso pela atuação do Estado e dos poderes públicos, mas que são sufragados pelo voto de cada cidadão maior e interessado, pelo que também aqui a decisão individual é relevante, podendo incluir o combate à ENR como critério adicional de escolha.

É aqui que entra a relação entre a ENR e o bivalve, que inspirou o título sugestivo deste artigo.

Há poucos dias, a GNR apreendeu no Montijo mais de quatro toneladas de bivalves (sobretudo ameijoa dourada) numa megaoperação (mais de 225 efetivos da GNR, acompanhados de inspetores da Autoridade Tributária, apos uma investigação de ano e meio, com recurso a 82 mandados de busca) em que foram detidos nove portugueses e um estrangeiro por apanha ilegal de bivalves e crime de fraude fiscal, lesando o Estado “em vários milhões de euros”, segundo os media.

Trata-se de uma atividade paralela que cai no âmbito da ENR, um fenómeno existente em todos os países e que traduz a parte da economia não avaliada pela contabilidade nacional, explicando, por exemplo, a sobrevivência das populações em países com PIB per capita abaixo do limiar de subsistência.

A ENR integra cinco áreas: Economia ilegal; Economia oculta (subdeclarada ou subterrânea); Economia informal; Produção para uso próprio (autoconsumo) e Produção subcoberta por deficiências da estatística.

Economia ilegal e a Economia oculta, na qual se insere a atividade de apanha ilegal e não declarada de bivalves acima descrita, são particularmente gravosas – refletindo, nomeadamente, a fraude, o branqueamento de capitais, o aumento dos conflitos de interesse, o uso de informação privilegiada, a desregulação e o enfraquecimento do Estado –, devendo ser combatidas de forma enérgica e eficaz.

Economia informal (por exemplo, dar explicações sem passar fatura) e o Autoconsumo (como plantar couves no quintal, o que é positivo do ponto de vista social se for feito como escolha, mas negativo se tiver origem na ausência de meios para comprar comida) servem de almofada social, evitando um maior sofrimento da população, sobretudo em altura de recessão e nos países com menos recursos para a proteção social, em que, como diz o povo, “quem sofre é sempre o mexilhão”. Aqui o desafio é o desenvolvimento das economias em termos de obtenção de recursos (via crescimento económico) e a sua alocação eficiente à proteção social (com fiscalização adequada), para que as respetivas populações não tenham de recorrer à economia informal e ao autoconsumo para satisfazer as necessidades básicas, reduzindo estes dois fenómenos a uma dimensão socialmente equilibrada, pois irão existir sempre.

Produção subcoberta por deficiências da estatística decorre das dificuldades de recolha e tratamento de informação. A sua redução requer maior e melhor alocação de meios para desenvolver os sistemas estatísticos.

Entre as sugestões apresentadas no estudo para o combate à ENR, incluem-se, ao nível do Governo:

- A diminuição da carga fiscal, sobretudo nos impostos diretos (IRS, IRC e contribuições sociais). A economia oficial é pouco competitiva face à ENR, como demonstra o exemplo dado da apanha ilegal e não declarada de bivalves. Importa que o governo tome medidas adequadas e abrangentes para tornar a economia oficial mais atrativa e competitiva – face à ENR, mas também face aos países concorrentes –, de um modo geral, para que as pessoas (trabalhadores e empresários) não tenham de recorrer à ENR para obter níveis de rendimento mais condignos ou até mesmo emigrar (deslocalizar, no caso das empresas).

- Ao nível dos apoios sociais: (i) a redução da fiscalidade sobre os rendimentos de entrada na economia oficial, permitindo aumentar os apoios sem ultrapassar esses rendimentos líquidos; (ii) o reforço da fiscalização (com os meios a dispor da Autoridade Tributária); (iii) condicionar o acesso à capacitação dos beneficiários, evitando a “subsidiodependência” e a acomodação.

- A implementação do crime de enriquecimento ilícito (setor público e privado) como na França.

Ao nível do que cada cidadão consumidor e empresa pode fazer individualmente no seu dia a dia, importa, desde logo, o cumprimento da lei e das regras fiscais, declarando todos os rendimentos.

Importa ainda a vigilância que cada um deve fazer nas relações económicas em que se insere, pedindo fatura em todas as compras efetuadas, mesmo que o benefício fiscal (dedução de IVA em sede de IRS para o consumidor e dedução de IRC da despesa e do IVA associados à compra) possa não ser muito significativo (sobretudo no caso dos cidadãos).

Ajudará muito se, primeiro, o Estado reduzir bastante a carga fiscal e os representantes eleitos derem o exemplo de cumprimento das leis e regras fiscais, pois o exemplo deve vir de cima.

Ao contrário dos países do Norte da Europa, em que a fuga aos impostos é vista muito negativamente pela sociedade, em Portugal celebramos aquele que consegue enganar mais o Estado – visto como vilão porque absorve uma boa parte dos nossos recursos e o faz ineficientemente –, mas, no fundo, o Estado somos todos nós, pelo que o resultado final é menos recursos para a saúde e educação, nomeadamente, o que penaliza sobretudo os mais pobres, penalizando o desenvolvimento e a coesão social. Trata-se de um círculo vicioso que todos temos de quebrar. Cabe ao Estado dar o primeiro passo e nós seguirmos.