Pedro Moura, Expresso online

A culpabilização do ‘Poder’ sobre todos os males da nossa realidade (passada, atual e futura) é alimentada não só pelos próprios cidadãos, mas também pelas estruturas e organizações que de alguma forma dependem dos cidadãos, como os meios de comunicação social, sindicatos, e até, paradoxalmente, os próprios partidos políticos ou organizações do ‘Poder’

No livro ‘O Equilíbrio do Poder’ (título original ‘The Narrow Corridor’), Daron Acemoglu e James Robinson apresentam o conceito de ‘Corredor Estreito’ numa tentativa de explicar a evolução das sociedades em direção à liberdade e prosperidade (ou não). Este conceito assenta numa relação contínua de tensão entre os poderes do Estado e a Sociedade. Quando esta relação se inclina mais para o lado do Estado tende-se a ter sociedades autoritárias, opressivas e com pouca liberdade (exemplos: China, Rússia). Se a relação se inclina mais para o lado da Sociedade a tendência é para gerar ausência de capacidade de governação coletiva, anarquia e caos (exemplos: Líbano, Zâmbia).

Ou seja, o velho ditado latino de ‘No meio está a virtude’ também serve para a evolução saudável das sociedades. A imagem seguinte serve para reforçar o conceito.

O “corredor estreito”, reproduzido de artigo por Miller, Zissimos
O “corredor estreito”, reproduzido de artigo por Miller, ZissimosDR

Introduzi este conceito para chegar ao tema que realmente quero abordar: a falta de responsabilidade e responsabilização dos cidadãos na sociedade, e o efeito que tal tem na saúde da mesma. Embora julgue que este fenómeno é imensamente generalizado, irei focar-me naturalmente em Portugal.

Sempre que se discute algo negativo no funcionamento da sociedade ou das organizações, as responsabilidades tendem a ser atribuídas quase exclusivamente ao ‘Poder’, seja esse poder uma entidade mais ou menos humana (ou seja, o ‘chefe’, o patrão, o presidentes da autarquia ou do clube do bairro, o Governo, a empresa, o funcionário por detrás do guichet, etc.), ou seja esse poder algo mais abstrato como ‘o Sistema’, as leis, os processos, a burocracia, ‘os esquemas’, ‘o habitual’ ou qualquer outro conceito similar. No fundo, a raíz do problema é sempre um ‘Outro Poderoso’ que tende a ter níveis arbitrários de poder e que, obviamente, tem sempre intenções dolosas (ou seja, mais populisticamente, ‘de nos querer lixar’).

Esta culpabilização do ‘Poder’ sobre todos os males da nossa realidade (passada, atual e futura) é alimentada não só pelos próprios cidadãos, mas também pelas estruturas e organizações que de alguma forma dependem dos cidadãos, como os meios de comunicação social, sindicatos, e até, paradoxalmente, os próprios partidos políticos ou organizações do ‘Poder’ (naturalmente remetendo culpas para os seus concorrentes quando assim convém). Cria-se (criou-se) assim um caldo cultural em que, à partida, se sabe quem são as vítimas e os culpados. As vítimas o ‘Povo’, os culpados o ‘Poder’.

Ou seja, os próprios cidadãos, o ‘Povo’, tende a ser insulado de toda e qualquer responsabilidade pela realidade que o rodeia, pois é, por natureza e omissão, vítima, e nunca culpado. O cidadão tem direitos sociais, mas não deveres sociais. O cidadão deve exigir, e o Poder deve entregar. O cidadão vota e paga impostos, mas a sua responsabilidade termina aí. O cidadão pode virar a cara a situações em que até poderia intervir, e simplesmente dizer a si mesmo (e por vezes aos outros) que não tem ‘nada a ver com isso’. Ou seja, o cidadão nunca é realmente chamado à liça quando se trata de assumir responsabilidades que extravasem a sua própria pessoa.

Antes de continuar, outros dados relevantes: Portugal é o penúltimo país da OCDE (38 países) no que toca à participação cívica dos cidadãos (mais aqui). E já agora o 5.º pior no que toca a ‘Satisfação de Vida’ (mais aqui).

Para se estar no ‘Corredor Estreito’ de Acemoglu e Robinson é preciso equilíbrio entre Estado e Sociedade. Neste momento a ‘Sociedade’ em Portugal está refém da sua própria inépcia e de uma narrativa que a desculpabiliza de toda e qualquer responsabilidade cívica e social. Isto traduz-se num desequilíbrio estrutural que legitima a captura de recursos e poder por parte de grupos corporativos, danificando a qualidade das Instituições Políticas e Económicas, da Liberdade e da Justiça e desviando recursos para fins extrativos. Os cidadãos ou vivem do ‘pão e circo’ de salário mínimo a salário médio (ambos miseráveis), ou aqueles que conseguem ter mais noção das coisas optam por se alhear do papel positivo que poderiam ter na condução dos nosso destinos.

É necessária uma mudança na ética social dos cidadãos, que assumam responsabilidade pelo papel de participação cívica que é necessariamente seu, que participem diária e ativamente na vida das organizações e das instituições com que se relacionam. É necessário que o ‘Poder’ perceba que uma sociedade fraca os enfraquecerá também a eles.

Os meios de comunicação social podem ter aqui um papel fundamental, desviando parte dos recursos que gastam nas ‘novelas’ do poder que tanto entretêm (e anestesiam) a populaça para uma lógica editorial promotora de uma maior participação social.

Atores como o Presidente da República e muitos outros com influência deviam definir como prioridade o enaltecimento de uma mudança de atitude por parte dos cidadãos no sentido de maior participação cívica e responsabilização. Os nossos ‘brandos costumes’ não devem ser usados para criar e manter uma paz social podre, assente em fraco crescimento económico e manutenção de níveis de literacia e participação cívica miseráveis, claramente comprometedora do nosso futuro em quanto Povo e País. Devemos mais não só a nós, mas sobretudo aos nossos filhos.

Porque não uma nova campanha ‘Portugal não é só teu’ (lembram-se do Herman aqui e aqui?). Nessa altura houve uma mudança de comportamento por parte do povo, a par de um forte progresso social e económico. Que tal uma campanha ‘Portugal também é teu’, a incitar as pessoas a não se limitarem à resignação e à maledicência, a não se habituarem à mediocridade e à dependência, a terem um maior papel nas suas próprias vidas.

E, no final, é bom recordar o fundo de verdade encerrado no provérbio ‘cada povo tem o governo que merece’. Povo, que governo merecemos?