José António Moreira, Expresso online
Partindo do lucro anunciado de 65,6 milhões de euros, e após três ajustamentos, chega-se a um resultado integral (corrigido) negativo de 203,4 milhões. Quem é que avança para assumir a paternidade do prejuízo?
Em finais de março, a notícia surgiu na comunicação social de modo quase uniforme: “TAP volta aos resultados positivos com lucro de 65,6 milhões de euros”. Não faltou quem, em bicos de pés, se apresentasse como obreiro de tão grande feito; quem, mais modestamente, visse tal resultado como consequência direta da nacionalização da empresa; ou ainda quem já reclamasse o fim do corte dos salários em vigor ou o direito a um bónus pelo bom desempenho da empresa.
Tal foi a regozijo que ninguém parece ter-se lembrado de que os resultados contabilísticos são estimados segundo regras e que estas, em certas situações, são mais ou menos “tortuosas”, possibilitando, em particulares circunstâncias, criar a ilusão de resultados que, em verdade, não existem. Também não foi tido em consideração que o Governo e a administração da empresa estavam sob enorme pressão pública para publicitarem resultados que criassem uma perceção favorável do desempenho da TAP, contraponto ao chorudo “cheque” que a esta havia sido entregue. Tendo isto presente, nos pontos seguintes procurar-se-á ajustar o resultado do período, com o objetivo de propor um número que, mais realisticamente, ilustre esse desempenho no ano em causa.
Ajustamento 1: chega-se ao resultado integral. Parte-se do resultado líquido (lucro) de 65,6 milhões (M) de euros.
Este resultado consta da última linha da “demonstração do resultado” (DR), o mapa em que as empresas explicam a formação deste. Porém, as regras contabilísticas impõem que determinados gastos e rendimentos não sejam considerados como componentes do resultado do período, sendo registados diretamente nos capitais próprios. Em tais casos, o impacto das operações tende a ser mais opaco, sobretudo para os destinatários da informação que tomam aquele resultado como o indicador de referência do desempenho da empresa. Para reduzir essa opacidade, empresas como a TAP são obrigadas a disponibilizar um mapa de “demonstração do resultado integral (DRI)” (“comprehensive income statement”), em que ao conteúdo da DR é adicionado o impacto das referidas operações cujos efeitos fluíram diretamente para os capitais próprios. Esse resultado integral é uma medida mais próxima do valor criado pela empresa (se for positivo) ou do valor destruído (se for negativo). Olhe-se a DRI da TAP. Em 2022, esta verificou um prejuízo integral de 66,2 M. Sim, não é lapso. Partindo do resultado líquido positivo (lucro) de 65,6 M de euros, adicionando-se o gasto suportado para ajustar o fundo de pensões (-21,7 M), mais outros gastos não especificados (-27,7 M) e as perdas em instrumentos financeiros derivados (-82,4 M), o resultado torna-se substancialmente negativo.
Ajustamento 2: o efeito dos impostos diferidos. Parte-se de um resultado integral negativo (prejuízo) de 66,2 M.
Em dezembro de 2022, para vigorar a partir de 2023, o Governo, na Lei do Orçamento, eliminou o existente período temporal máximo para dedução dos prejuízos fiscais. Uma pequena (grande) alteração que já começou a produzir efeitos. A administração da TAP usou-a como suporte para registar 23,6 M de impostos diferidos ativos (IDA) relativos a prejuízos fiscais passados, que anteriormente estava impossibilitada de registar por não prever a geração futura de resultados positivos suficientes para absorver tais prejuízos. Não fora esse pequeno “jeito” legislativo e aquele montante, não repetível, não poderia ter sido registado, aumentando o prejuízo integral. Ajusta-se este em conformidade.
Ajustamento 3: a reversão de provisões. Descontado o efeito do registo dos IDA, parte-se de um resultado integral negativo (prejuízo) de 89,8 M.
É um procedimento de fácil implementação que a literatura da especialidade refere como tendencialmente presente em todos os processos de restruturação de empresas. Consiste em, no ato da planificação da mesma, orçamentar gastos superiores aos necessários, para, posteriormente, fazer a reversão do excesso (gerando um rendimento e aumentando o resultado) num ou mais períodos futuros. Por exemplo: se em vez de 3.200 M o custo da restruturação da TAP tivesse sido anunciado como “apenas” 2.900 M, o “desconforto” dos contribuintes seria substancialmente diferente? Não, certamente. Então, a administração da empresa e o acionista tinham um incentivo para sobreorçamentar os gastos, aplicando a sabedoria popular “perdido por cem, perdido por 1.000”, que tem como consequência a transferência de resultados para períodos futuros. No caso da TAP, no ano de 2022, entre outras, de menor dimensão, verifica-se a reversão do excesso de 113,6 M de gastos previstos para o fecho do negócio da TAP no Brasil, que se reflete num aumento direto de igual montante do resultado do período. Por isso, sem este efeito contabilístico, não repetível, o resultado integral negativo (prejuízo) da empresa seria de 203,4 M.
Este número mostra uma imagem do desempenho da TAP mais realista do que a transmitida pelo resultado líquido inicialmente publicitado. É bem diferente, para pior. Quem é que avança para assumir a paternidade de um prejuízo de mais de 200 M? Quem se atreve a reclamar um prémio de gestão por tal desempenho?
A terminar: duas notas em cima do resultado integral (corrigido) negativo de 203,4 M.
Primeira, as regras contabilísticas são imperfeitas, às vezes “tortuosas”, como se referiu. Porém, o pior de tudo, no que respeita à qualidade da informação produzida, é o aproveitamento que dessas regras se pode fazer, para, sem as infringir, mostrar uma realidade paralela que serve interesses particulares. Segunda, a presente crónica pode ser vista como a mensageira que traz as más notícias, potencialmente contribuindo para desfazer os castelos de vento que já se erigiam em torno da TAP. Presidiu à respetiva redação o desejo de contribuir para proporcionar a quem disponibilizou os meios para capitalizar a empresa – os contribuintes, genericamente considerados – uma imagem mais realista da respetiva situação e desempenho. Porque, se não se souber onde se está, só por acaso se encontrará o caminho que conduz ao destino pretendido.