Óscar Afonso, Expresso online
Além de não resolver o grave problema habitacional e agravar problemas, o P+H apoia-se em medidas de hostilização ideológica que violam princípios constitucionais como o da não discriminação e o da liberdade económica
O Programa Mais Habitação (P+H) afigura-se como uma “mão cheia de nada”, com um conjunto profuso de medidas em que poucas recolhem um acolhimento mais ou menos generalizado – será o caso da simplificação do licenciamento, mas sobretudo em termos conceptuais, tendo em vista aumentar a oferta de habitação, pois vários especialistas levantam muitas dúvidas e questões quanto à real efetividade das propostas concretas, nomeadamente a responsabilização dos projetistas.
Todas as demais medidas são:
(i) ou ineficazes (não têm efeito): por exemplo, a obrigatoriedade de oferta de taxa de juro fixa no crédito à habitação – basta os bancos terem condições pouco atrativas que não terão clientes, se não quiserem;
(ii) ou inexequíveis: como as medidas que dependam das Câmaras e estas não as quiserem executar, nomeadamente o polémico arrendamento coercivo de prédios considerados devolutos, isto caso a figura não venha a ser declarada inconstitucional, o que é uma séria possibilidade, significando também que a medida não é exequível;
(iii) ou contraproducentes; isto é, que atuam em sentido contrário ao pretendido.
É nesta terceira categoria em que me vou deter com maior atenção a seguir com dois exemplos facilmente entendíveis: a séria limitação ao Alojamento Local (AL) decidida pelo governo e o condicionamento do aumento de rendas em novos contratos, que nos traz à memória os trágicos efeitos dos vários processos de congelamento de rendas ao longo da nossa história, incluindo em 1974, no início da nossa democracia – na verdade, uma atualização de rendas limitada a 2%, além de ir contra as regras de mercado, significa uma perda de rendimento em termos reais com os valores de inflação elevados que estamos a observar.
Em traços gerais, estas duas medidas (mas também outras, como o arrendamento coercivo) visam suprir a incapacidade de o governo fornecer habitação a custos controlados, mobilizando para isso imóveis do setor privado e assentando em dois princípios fundamentais: (i) forçar os proprietários de imóveis destinados ao AL a abandonar a atividade e a colocar os imóveis no mercado; (ii) desvalorizar os imóveis para permitir que os cidadãos os possam adquirir ou arrendar. Desse modo, à custa do prejuízo e frustração de expectativas de outros, o governo espera lançar no mercado imóveis atualmente destinados ao AL, o que provocará uma diminuição geral no valor dos preços e das rendas, em conjunto com a referida limitação do aumento das rendas.
Ao desvalorizar ativos imobiliários, o P+H vai contra a função principal do Estado de promover o desenvolvimento económico e a criação de valor. O uso de políticas públicas para destruir todo um setor de atividade (o AL) e para provocar uma desvalorização generalizada dos ativos é, no mínimo, questionável. Por regra, a destruição de valor na economia não resolve problemas, agrava-os. Acresce que adotar medidas de destruição de valor no contexto atual de aumento das taxas de juros e de crise económica é especialmente perigoso.
Para além de não resolver o grave problema habitacional e agravar problemas, o P+H apoia-se em medidas de hostilização ideológica que violam princípios constitucionais como o da não discriminação e o da liberdade económica. As medidas propostas também afetarão negativamente o setor do turismo, que é dos poucos em que o país é competitivo, prejudicando, assim, toda a economia. Além disso, ignora que o problema do acesso à habitação está concentrado social e territorialmente.
Ainda mais importante, as duas propostas referidas ignoram mecanismos básicos de mercado que, a prazo, as tonam contraproducentes para os efeitos pretendidos. Ao desvalorizar os ativos para efeitos de AL e de arrendamento (a limitação das rendas traduz-se numa redução do valor atual líquido de um qualquer projeto de compra ou construção de habitação para arrendamento), o governo está a incentivar uma redução da oferta de edifícios para estas finalidades, o que, num segundo momento, implicará uma nova pressão em alta dos preços das habitações e das rendas por insuficiência de oferta. Na verdade, qual é o investidor nestas áreas que irá confiar no governo quando “mudou as regras a meio do jogo”, incluindo a instabilidade fiscal promovida? A perda de confiança traduzir-se-á em menos investimento no setor da habitação e AL, indo contra os efeitos desejados das medidas.
Em suma, o P+H desvaloriza ativos imobiliários, baseia-se no dirigismo económico perigoso que hostiliza setores da economia, viola princípios constitucionais, e penaliza o desenvolvimento económico. Por isso, o P+H deve ser rejeitado e outras soluções devem ser encontradas para resolver o acesso à habitação.
Para solucionar um problema, é necessário primeiro entender às suas causas. Uma das causas é estrutural e deriva da incapacidade do governo para fornecer habitação sustentável a custos controlados. Outra das causas é conjuntural e foi causada pela especulação fiscal, que aproveitou o aumento das taxas de juros e da valorização dos imóveis. O governo é, pois, o principal responsável pela exclusão habitacional que afeta cada vez mais jovens e indivíduos das classes média e baixa. Para além de não ter adotado medidas eficazes ao longo do tempo, vem agora, com o P+H, propor outras que agravam ainda mais a situação, tentando transferir a responsabilidade para o setor privado e promovendo uma indesejada luta de classes.
Detenho-me agora em alguns exemplos que caem na categoria de medidas inexequíveis, várias delas feridas de inconstitucionalidade, um termo que não deve ser banalizado, pois é de uma enorme gravidade.
Entre as medidas graves e discriminatórias que devem ser rejeitadas, inclui-se a eliminação do coeficiente de vetustez em imóveis destinados ao AL. Essa medida é inconstitucional e injusta, pois estabelece que os imóveis afetos ao AL valem mais do que os outros, violando o princípio de referência ao valor de mercado e da objetividade, além de discriminar um grupo específico de contribuintes. A medida também viola a natureza do Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI), que é um imposto sobre o património ou a riqueza. Ora, se o valor de um imóvel está (artificialmente) acima do valor de mercado, o IMI não tributa o património ou a riqueza, sendo, por isso, inconstitucional.
Já a revogação do regime de suspensão da tributação em IMI dos prédios adquiridos para revenda pelas empresas que exercem essa atividade viola a natureza do IMI como um imposto sobre o património ou a riqueza (passando estranhamente a ser também um imposto sobre “mercadorias”), discriminando negativamente e de forma arbitrária este tipo de empresas. Acresce que a redução do prazo de exigência de revenda de imóveis para essas empresas, como requisito de isenção do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (IMT), contribuirá também para uma de três hipóteses: (i) destruição da atividade económica de revenda; (ii) agravamento do preço da habitação quando os custos adicionais poderem ser passados para os compradores; ou (iii) aumento da evasão e da fraude fiscal.
Como se não bastasse, o P+H propõe ainda a criação da Contribuição Extraordinária sobre os Estabelecimentos de Alojamento Local (CEAL), que é um novo imposto anual de 35% sobre o rendimento anual médio previsível de cada imóvel afetado ao AL em zonas urbanas pressionadas. A base de cálculo é determinada pelo INE, que, como é do conhecimento geral, não tem competências tributárias e não produz estatísticas para fins tributários. Acresce que a CEAL não atende às despesas do proprietário, é sempre a mesma, independentemente do lucro real, sendo, por isso, injusta e regressiva. A CEAL viola o princípio constitucional da tributação sobre o rendimento real das empresas, é cumulativa com o Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Singulares (IRS) e Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Coletivas (IRC), pelo que contribuirá para a falência de muitas empresas.
Dado o contexto atual, seria expectável que o P+H contemplasse medidas que permitissem que jovens e famílias das classes média e baixa pudessem adquirir imóveis permanentes a preços condizentes com o mercado. Algumas das medidas que deveriam ter sido consideradas no P+H incluem: (i) isenção total do IMT na primeira aquisição, com um possível agravamento do IMT nas aquisições de segunda habitação; (ii) isenção do IMI por um período mais significativo de anos; (iii) dedução à coleta do IRS do valor dos juros pagos; (iv) isenção do IRS quando a prestação mensal corresponder a um valor expressivo do rendimento; (v) devolução de metade do IRS e do IRC que o Estado cobra dos vendedores de imóveis.
Seria ainda de esperar que o P+H incluísse outras medidas, como por exemplo: (i) ampliar a dedução à coleta do IRS para o valor das rendas pagas pelas famílias de médio e baixo rendimento em habitações permanentes, aliviando-lhes assim as dificuldades financeiras; (ii) acabar com a isenção do IMI para os prédios do Estado e seus organismos autónomos, incentivando a sua utilização e evitando o abandono; (iii) impor uma tributação agravada em sede de IMI para imóveis que tenham sido comprovadamente abandonados; (iv) acabar com a isenção de IMI para imóveis localizados em centros históricos, onde a especulação imobiliária tem levado a um aumento exorbitante dos preços; (v) implementar uma taxa reduzida de IMI para os prédios destinados à habitação própria e permanente; (vi) repor o regime dos Fundos de Investimento Imobiliário de Arrendamento Habitacional, que permitia aos proprietários venderem os seus imóveis a esses fundos para mantê-los como inquilinos.
O P+H apresenta, pois, diversos problemas e não será capaz de resolver a crise habitacional em Portugal. Alternativamente, as implementações das medidas expostas nos dois últimos parágrafos desta crónica trariam certamente benefícios significativos para a resolução do problema. Tais medidas, que não envolvem hostilização ideológica, contribuiriam para proporcionar maior estabilidade financeira a jovens e famílias das classes média e baixa, além de tornar a aquisição e o arrendamento de habitação própria e permanente mais acessível.