José António Moreira, Público online,

O Orçamento para 2023 trazia uma surpresa: a ausência de limite temporal para dedução de prejuízos fiscais a lucros tributáveis futuros das empresas.

Anualmente, o Orçamento Geral do Estado (OGE) é um manancial de surpresas fiscais. Algumas deixam perceber que o Governo aproveita o documento para, com suavidade, fazer passar alterações que, se propostas isoladamente ao Parlamento, dificilmente passariam sem acesa discussão ou, no mínimo, sem perguntas incómodas sobre o objetivo que lhes está subjacente.

Do OGE 2023 destaco uma dessas surpresas: a que passou a permitir às empresas, no âmbito do imposto sobre o rendimento (IRC), a ausência de limite temporal para dedução de prejuízos fiscais a lucros tributáveis futuros.

Querendo-se um exemplo da instabilidade do regime fiscal português, tantas e tantas vezes glosada, o prazo para a referida dedução é um caso paradigmático. Qual ioió, ao longo dos anos foi oscilando entre os 4 e os 12 anos. Concretize-se, para os anos mais recentes: os prejuízos de 2008 e 2009, podiam ser deduzidos, havendo lucros, no período de 6 anos; 2010 e 2011, 4 anos; 2012 e 2013, 5 anos; 2014 a 2016, 12 anos; 2017 a 2019, 5 anos (mantiveram-se os 12 para as PME, pequenas e médias empresas); 2020 e 2021, 12 anos (os anos da pandemia não contaram para efeitos da definição dos prazos de dedução dos prejuízos anteriores); 2022, voltou a 5 anos (12 para PME). Subitamente, como se o fio do ioió se tivesse partido, prazo ilimitado para os prejuízos de 2023 e seguintes, bem como para os prejuízos anteriores ainda dentro do prazo de dedução.

É natural que se procure compreender a intenção que subjaz a esta aparente generosidade do Governo para com as empresas. Sim, porque a alteração legislativa agora efetuada acaba por ser generosa para as que verifiquem prejuízos fiscais, sem que se veja que ganho (real) dela retira o Estado.

Analise-se, sinteticamente, o processo subsequente à verificação de prejuízos fiscais. Contabilisticamente, a empresa registará numa conta de imposto diferido ativo (AID) o montante do IRC que esse prejuízo lhe permitirá poupar quando, em períodos futuros, o deduzir aos lucros tributáveis. Desse registo resultará, no ano em que for efetuado, um impacto positivo para o resultado líquido, por contrapartida do incremento na conta de AID. A imagem financeira da empresa virá melhorada, em termos de resultados e de capitais próprios. Este impacto positivo reverterá se a empresa, no prazo definido para a dedução, não vier a ter lucros tributáveis suficientes para deduzir os prejuízos. Neste caso, os AID não utilizados terão de ser anulados, com impacto no resultado líquido e nos capitais próprios.

Um pequeno (grande) detalhe. A contabilização inicial de AID, para o caso da poupança de IRC inerente à existência de prejuízos, está sujeita à verificação de elevada probabilidade de que a empresa, no decurso do referido prazo, terá lucros tributáveis suficientes para efetuar a dedução. Este constrangimento tem em vista limitar o registo de falsos ativos no balanço da empresa, pois, na essência, esses valores, se não puderem ser deduzidos, nunca se virão a traduzir em qualquer futuro recebimento (ou redução de pagamento) de fundos. Procurou a entidade emitente das normas contabilísticas, deste modo, limitar a criatividade contabilística por parte das empresas e tornar a respetiva informação financeira mais fiável.

Com a eliminação do prazo para a dedução, prevista no OGE 2023, tal constrangimento desaparece e uma empresa que tenha verificado prejuízos poderá registar de imediato o AID correspondente, independentemente das suas expetativas quanto a lucros tributáveis futuros. O efeito nunca será revertido, permanecendo no balanço da empresa até ser deduzido, ou até ao fim da vida da empresa. É expetável, por isso, que os balanços das empresas se venham a tornar mais opacos, menos fiáveis.

O Estado, como se referiu acima, não tira vantagem desta alteração. Pelo contrário, em termos de receita de IRC arrecadada, poderá ser prejudicado, porque haveria prejuízos que, por não serem utilizados dentro do prazo, prescreveriam quanto à dedução. A partir de agora, isso não acontecerá.

O que terá, então, despoletado este ato de generosidade?

À falta de certeza, especule-se. O Governo, cujos interesses nem sempre parecem ser coincidentes com os do Estado, poderá vir a tirar proveito da medida, em termos de imagem. Pense-se em empresas públicas como a CP, soterradas em prejuízos fiscais, que não têm tido possibilidade de registar AID por ausência de expetativa de obtenção de lucros tributáveis futuros no prazo de dedução. A partir de agora, com a ausência desse prazo, vai ter um autêntico “maná”, com reflexo na imagem financeira.

Ou a TAP, que se pretende alienar a curto prazo. Sob o contexto legal anterior, não existiria comprador que estivesse disposto a aceitar os AID constantes do balanço da empresa como um verdadeiro ativo, muito menos os prejuízos fiscais acumulados que ainda não tiveram espaço para serem registados. Agora, havendo ausência de prazo para a dedução, a música é outra. Os AID, no que àqueles prejuízos respeita, funcionarão como um verdadeiro crédito fiscal. Obter-se-ão melhores condições na venda da empresa – um trunfo para o Governo –, a expensas da arrecadação futura de receita por parte do Estado.

No final, tudo irá parecer melhor, permanecendo na mesma. É a sina nacional.