Mário Tavares da Silva, Expresso online

Mais do que uma assumir uma postura sancionatória que deve, aliás, em meu entender, constituir-se sempre como uma última ratio na atuação do controlo, deveria essa entidade, idealmente, ser capaz de construir, pela adoção de boas práticas de natureza preventiva e pedagógica, um ambiente de maior confiança, assente numa estratégia fortemente orientada para a mitigação de riscos de ocorrência de fenómenos de natureza corruptiva

Como foi amplamente noticiado pelos mais diversos meios de comunicação social, a entrada em vigor no passado dia 7 de junho de 2022 do Regime Geral de Prevenção da Corrupção (RGPC) encerra, pela sua natureza, exigências e propósitos, uma renovada esperança na mitigação de riscos associados à prática de atos de natureza fraudulenta e corruptiva.

Brotando diretamente da Estratégia Nacional Anticorrupção (ENA) 2020-2024, o RGPC propõe-se assumir um papel capital para um efetivo e eficaz combate ao fenómeno da corrupção e a todas as práticas destrutivas da democracia que o mesmo impacta nas tarefas de preservação dos mais elementares valores de cidadania, livre concorrência, integridade, ética, probidade e legalidade e, não menos relevante, na necessária, justa e equitativa redistribuição dos recursos financeiros entre todos os membros da pólis.

Acresce, em simultâneo, que com o RGPC, a ENA procurou, também, endereçar uma maior atenção, não apenas à dimensão da prevenção, como também às dimensões de deteção e de repressão, valorizando-se, nessa medida, o conhecimento, a formação, a capacitação e, sobretudo, a disseminação e partilha de boas práticas, interinstitucionais e intrainstitucionais.

Aos “clássicos” e já sobejamente conhecidos planos de gestão de riscos de corrupção e infrações conexas, o legislador responde agora com uma entidade dotada de um efetivo “poder de fogo”, ao atribuir ao Mecanismo Nacional Anticorrupção (MENAC) competências contraordenacionais.

Não subsistem, pois, quaisquer dúvidas quanto à dimensão e complexidade dos desafios a que as entidades públicas e privadas terão agora de responder, substantiva e formalmente, não contemporizando o legislador, e a sociedade em geral, com mais percalços ou escusas pelo caminho.

As entidades do setor público e privado terão agora de saber desenvolver, implementar e, sempre que necessário, atualizar, os seus programas de cumprimento normativo e todos os importantes documentos e instrumentos de controlo que os devem corporizar.

Avultam, entre eles, os planos de prevenção de riscos de corrupção e infrações conexas (PPR), os códigos de ética e de conduta, os programas de formação, os canais de denúncia e, por fim, mas não com menos importância, a relevante escolha e designação do responsável pelo cumprimento normativo.

No plano autárquico, sobretudo, mas não só, pelas situações mais graves envolvendo atores locais e que vem sendo, como é do conhecimento geral, intensamente mediatizadas no espaço público, é expetável que as especificidades e idiossincrasias das entidades inseridas nesse universo, tornem o desafio trazido pelo RGPC ainda mais exigente para os respetivos líderes políticos, dirigentes e colaboradores.

Julgamos neste quadro, com as variáveis de que dispomos à data de hoje e em linha, refira-se, com algumas relevantes vozes dos mais diversos quadrantes de intervenção que já vem apontando nesse sentido, que se pode revelar útil abrir um espaço de reflexão sobre o atual modelo de controlo autárquico, e da utilidade, ou não, de voltar a existir uma entidade orientada e especificamente vocacionada para o universo autárquico.

Uma entidade que fosse capaz de garantir, ex ante, e em primeira linha, uma presença regular e fortemente pedagógica junto das entidades autárquicas, dos seus políticos, dirigentes e demais colaboradores.

Uma entidade que orientasse a sua ação pela partilha de boas práticas, pela comunicação e explicitação de como fazer bem as coisas e de forma regular, que fosse capaz de ouvir os autarcas e os seus problemas, as suas dificuldades quanto a uma correta interpretação e aplicação das normas e, sobretudo, que os ajudasse a fazer ainda melhor, e diria de forma mais segura e competente, aquilo que deles os cidadãos esperam.

Mais do que uma assumir uma postura sancionatória que deve, aliás, em meu entender, constituir-se sempre como uma última ratio na atuação do controlo, deveria essa entidade, idealmente, ser capaz de construir, pela adoção de boas práticas de natureza preventiva e pedagógica, um ambiente de maior confiança, assente numa estratégia fortemente orientada para a mitigação de riscos de ocorrência de fenómenos de natureza corruptiva.

A este propósito, recordo os idos de 2011, ano em foi decidida, no quadro das orientações definidas pelo Programa de Reestruturação da Administração Central do Estado (PRACE), a extinção da Inspeção-geral da Administração Local, entidade criada no longínquo ano de 1986 e que soube sempre afirmar-se, entre outras coisas, como um “…parceiro de excelência da PJ…”, como aliás foi recentemente referido por um alto responsável daquele órgão de polícia criminal.

Numa altura de grandes desafios que se colocam a todos no quadro da descentralização, é, estou certo, um bom ponto de partida para a reflexão, em prol de um poder local ainda mais forte e mais robusto na sua incontornável, e desde há muito relevante, atuação no panorama democrático português.