Patrick de Pitta Simões, Jornal i online
Ninguém pode ser perseguido, privado de direitos ou isento de obrigações ou deveres cívicos por causa das suas convicções ou prática religiosa
Este artigo de opinião, parte da perceção de existir um desconhecimento generalizado sobre o enquadramento legal do “estatuto do denunciante”, gerando ideias incompletas ou erradas sobre direitos, deveres e garantias, daí que se coloque em nota de rodapé a base legal do que se refere.
«Os trabalhadores da Administração Pública e de empresas do setor empresarial do Estado, assim como os trabalhadores do setor privado, que denunciem o cometimento de infrações de que tiverem conhecimento no exercício das suas funções ou por causa delas não podem, sob qualquer forma, incluindo a transferência não voluntária ou o despedimento, ser prejudicados»[1].
O Regime Geral de Proteção de Denunciantes de Infrações (RGPDI)[2], prevê[3] que a pessoa singular que denuncie ou divulgue publicamente uma infração, incluindo a prática de crimes[4], com fundamento em informações obtidas no âmbito da sua atividade profissional, independentemente da natureza desta atividade e do setor em que é exercida, é considerada denunciante.
O RGPDI prevê ainda que podem ser considerados denunciantes, nomeadamente (portanto, a título exemplificativo) os trabalhadores do setor privado, social ou público; os prestadores de serviços, contratantes, subcontratantes e fornecedores, bem como quaisquer pessoas que atuem sob a sua supervisão e direção; os titulares de participações sociais e as pessoas pertencentes a órgãos de administração ou de gestão ou a órgãos fiscais ou de supervisão de pessoas coletivas, incluindo membros não executivos; e os voluntários e estagiários, remunerados ou não remunerados.
Não obsta à consideração de pessoa singular como denunciante a circunstância de a denúncia ou de a divulgação pública de uma infração ter por fundamento informações obtidas numa relação profissional entretanto cessada, bem como durante o processo de recrutamento ou durante outra fase de negociação pré-contratual de uma relação profissional constituída ou não constituída.
Para beneficiar das condições de proteção conferidas pelo RGPDI, isto é, situações de proibição de retaliação (licitas – não proibidas por lei) e medidas de apoio[5], o denunciante tem de estar de boa-fé, ter fundamento sério para crer que as informações são, no momento da denúncia ou da divulgação pública, verdadeiras e respeitar as regras de precedência entre os meios de denúncia interna e externa e a divulgação pública[6].
Refira-se ainda que a proteção conferida pelo RGPDI é extensível, com as devidas adaptações, a pessoa singular que auxilie o denunciante no procedimento de denúncia e cujo auxílio deva ser confidencial, incluindo representantes sindicais ou representantes dos trabalhadores; terceiro que esteja ligado ao denunciante, designadamente colega de trabalho ou familiar, e possa ser alvo de retaliação num contexto profissional; bem como pessoas coletivas ou entidades equiparadas que sejam detidas ou controladas pelo denunciante, para as quais o denunciante trabalhe ou com as quais esteja de alguma forma ligado num contexto profissional.
O disposto no RGPDI não deve prejudicar a aplicação de outras disposições de proteção de denunciantes mais favoráveis ao denunciante ou às pessoas referidas, bem como não prejudica a aplicação do direito nacional ou da União Europeia sobre a proteção de informações classificadas; a proteção do segredo religioso e do segredo profissional do médico, dos advogados e dos jornalistas; e o segredo de justiça.
No que respeita ao segredo religioso e dos jornalistas, o legislador nacional foi além do que previa o legislador europeu, numa norma que não é de harmonização mínima, isto é, em que há margem para os países poderem ir além das regras previstas na diretiva, tal como a que permite que os Estados-Membros alarguem a proteção de denunciantes a domínios ou atos não abrangidos no âmbito de aplicação material da Diretiva Whistleblowers[7].
Crê-se que o legislador nacional tentou compatibilizar o normativo europeu com o Código do Processo Penal (CPP), no que respeita à possibilidade[8] de os ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas, a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo, poderem escusar-se de depor sobre os factos por ele abrangidos.
Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento. No entanto algumas regras[9], não se aplicam ao segredo religioso. Este tipo de segredo tem maior proteção do que os demais.
A proteção do segredo religioso, blinda não só o titular do segredo, nos termos do CPP, como também quem o conhece por lhe ser permitido o direito ao silêncio, nos termos do artigo Lei de Liberdade Religiosa[10] e da Concordata entre a República Portuguesa e a Santa Sé[11], a saber: os ministros do culto/eclesiásticos não podem ser perguntados pelos magistrados ou outras autoridades sobre factos e coisas de que tenham tido conhecimento por motivo do seu ministério.
A liberdade de consciência, de religião e de culto está consagrada na Constituição da República Portuguesa[12]. Ninguém pode ser perseguido, privado de direitos ou isento de obrigações ou deveres cívicos por causa das suas convicções ou prática religiosa e, de igual modo, deve ser garantido o direito à objeção de consciência.
De acordo com a Lei de Liberdade Religiosa[13], a liberdade de consciência compreende o direito de objetar ao cumprimento de leis que contrariem os ditames impreteríveis da própria consciência, dentro dos limites dos direitos e deveres impostos pela Constituição e nos termos da lei que regula o exercício da objeção de consciência.
Consideram-se impreteríveis aqueles ditames da consciência cuja violação implica uma ofensa grave à integridade moral que torne inexigível outro comportamento.
Todavia, para efeitos da referida lei, o exercício do ministério é considerado atividade profissional do ministro do culto quando lhe proporciona meios de sustento[14].
Assim sendo, poderá ser considerado denunciante e protegido pela lei, a pessoa (o ministro de culto/eclesiástico) que denuncie ou divulgue publicamente crimes que envolvam menores com fundamento em informações obtidas no âmbito da sua atividade profissional, incluindo no setor social, a partir da entrada em vigor do RGPDI[15], não podendo, sob qualquer forma, ser prejudicado.
Note-se que, em situações anteriores ao RGPDI, salvo melhor opinião, não encontramos enquadramento legal para que um queixoso da prática de crimes ou infrações disciplinares possa ter o “estatuto de denunciante”, se a sua atividade profissional não se enquadrar no setor público ou privado.
[1] Assim dispõe o artigo 4.º da Lei n.º 19/2008, de 21 de abril, alterada pela Lei n.º 30/2015, de 22 de abril.
[2] Estabelecido pela Lei n.º 93/2021, de 20 de dezembro, e que transpôs para ordenamento jurídico nacional a Diretiva (UE) 2019/1937 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de outubro de 2019 (Diretiva Whistleblowers), relativa à proteção das pessoas que denunciam violações do direito da União
[3] No artigo 5.º.
[4] Tais como os previstos na alínea d) do n.º 1 do artigo 2.º.
[5] Artigos 21.º e 22.º.
[6] Previstos, sobretudo, no artigo 7.º.
[7] Artigo 2.º, n.º 2.
[8] Cf. artigo 135.º.
[9] As previstas nos n.os 3 e 4 do artigo 135.º.
[10] Cf. artigo 16.º da Lei n.º 16/2001, de 22 de junho, na sua versão em vigor.
[11] Artigo 5.º
[12] Artigo 41.º.
[13] Artigo 12.º
[14] Cf. artigo 16.º, n.º 3.
[15] A partir de 18 de junho de 2022, nos termos do artigo 31.º do RGPDI.