Miguel Abrantes, Jornal i online
A substituição das ideias de John Law (que foi responsável por criar no século XVII o primeiro banco central emissor de moeda), pela emissão descentralizada de moedas digitais, pode originar o crescimento de um monstro que brevemente será incontrolável.
A vida de John Law já inspirou vários realizadores de cinema, mas nenhum filme fez justiça à sua importância na criação do sistema financeiro atual.
Nasceu na Escócia em 1671, perdeu o pai aos 12 anos e foi enviado para um colégio interno onde permaneceu até aos 22 anos. Depois foi viver para Londres, onde se envolveu em duelos e foi condenado à morte por homicídio. Antes da sentença ser executada conseguiu fugir para a Europa continental e viveu em Amesterdão, Veneza e Paris, nesta cidade tornou-se amigo do Duque de Orleães quando este foi regente. Na sequência dessa amizade foi-lhe dada autonomia para restruturar o sistema bancário francês.
Na Europa os sistemas bancários eram caóticos. Várias moedas coexistiam no mesmo país e a população continuava a utilizá-las mesmo depois de extintas pelo Governo.
Em França a situação financeira caracterizava-se ainda por insuficiência de moeda e excessivas desvalorizações.
Para resolver a situação, John Law propôs a criação de um sistema em que o Estado tinha o monopólio de todas as atividades financeiras, incluindo a criação de moeda fiduciária e de um banco emissor de títulos de crédito suportados por receitas de impostos e de propriedades.
Na sequência destas reformas o rei francês ofereceu-lhe um banco.
Mais tarde (em 1717) atravessou o atlântico e instalou-se na colónia francesa da Luisiana, na América do Norte, onde fundou uma empresa que passou a deter o monopólio do comércio no rio Mississípi.
John Law foi, de facto, pioneiro na criação de bancos centrais, os quais têm a exclusividade da emissão de moeda e controlam a massa monetária em circulação.
Assim, estas instituições podem garantir aos utilizadores que a moeda que utilizam tem valor e é aceite dentro dos limites da jurisdição de uma zona monetária e, na maioria dos casos, que tem um valor cambial fixado diariamente pelo mercado.
Recentemente estes princípios foram postos em causa com a criação de moedas digitais (ou criptomoedas), as quais não são emitidas por nenhuma autoridade monetária, mas, sim, através de um sistema gerido por privados e assente num sistema consensualmente aceite por estes.
A referida emissão assenta num sistema conhecido por «mineração», que consiste na inclusão e validação das transações que dão origem a novas moedas digitais. Estas operações ficam registadas num banco público de dados, denominado blockchain.
No caso da moeda Bitcoin, a garantia de segurança deste sistema foi dada por Satochi Nakamoto (pseudónimo utilizado pela pessoa ou pessoas que criaram a moeda) e consiste na existência de um número limitado de moedas em circulação (21 milhões), que apenas será alcançado no ano 2144.
Este sistema, na prática, consiste na substituição das ideias de John Law. Pois, cria um sistema monetário cujos responsáveis são entidades privadas que dispensam a existência de uma autoridade pública que emita, regule, controle e se responsabilize pela circulação da moeda.
Esta mudança no sistema monetário, todavia, acarreta perigos de dimensão difícil de calcular.
A nível macroeconómico, a quantidade de moeda em circulação serve para controlar a inflação e fornecer incentivos à atividade económica. A possibilidade de uma entidade privada emitir moeda sem controlo público é suscetível colocar em causa o equilíbrio monetário e desencadear uma crise financeira e económica.
A nível microeconómico, quando os cidadãos têm dinheiro depositado ou investem em produtos financeiros, têm a garantia que pelo menos parte do seu investimento está salvaguardada (em Portugal existe o Fundo de Garantia de Depósitos e o Sistema de Indemnização aos Investidores). Os investimentos efetuados em moedas digitais não têm qualquer garantia.
A vulgarização das moedas digitais veio também facilitar a vida às redes de crime organizado. Pois, com a utilização destes ativos podem ser efetuadas transferências de forma encoberta sem passar pelo sistema financeiro oficial.
Por outro lado, o sistema em que estas moedas assenta é vulnerável, pois baseia-se em códigos e algoritmos que podem ser alterados por Hackers.
Assim, a substituição das ideias de John Law, neste domínio, acarreta diversos perigos. Pois, se deixarmos crescer um sistema monetário sem controlo público, podemos estar a deixar crescer um monstro que brevemente será incontrolável.
Ao contrário de serem um sinal de progresso, as moedas digitais podem fomentar o regresso ao século XVII, no que ao sistema financeiro diz respeito.
No dia 11 do corrente mês, 130 empresas do grupo FTX (que geria uma das maiores plataformas de moedas digitais do mundo) entregaram um pedido de falência às autoridades norte americanas. Este evento ocorreu depois de a referida plataforma sofrer uma crise de liquidez que deixou os investidores sem acesso aos fundos mantidos em bolsa. Segundo a CNN, esta falência pode provocar um prejuízo de até oito biliões de dólares.