Assim, para mitigar e prevenir uma série de riscos e perturbações económicas e financeiras, os principais bancos centrais - a Reserva Federal (FED), o Banco Central Europeu (BCE) e o Banco de Inglaterra - passaram a recorrer a instrumentos de política monetária não-convencionais, em particular, o forward guidance (política de comunicação com o objetivo de moldar a expetativa do público), a quantitative easing (política de alteração da dimensão do balanço do banco central), a qualitative easing (política de alteração da "composição" do balanço do banco central sem alteração da sua dimensão) e as taxas de juro negativas.
Tratou-se de uma inovação ao nível da política monetária que enriqueceu a paleta de instrumentos dos bancos centrais em lidar com problemas económicos da maior importância, tendo inclusive valido o Prémio Nobel de 2022 a Ben Bernanke, o Presidente da FED entre 2006 e 2014.
De acordo com a literatura existente, não restam dúvidas que as medidas de política monetária não-convencionais tiveram importantes efeitos. Os resultados não são, contudo, consensuais, no que toca à direção e à magnitude dos impactos, diferindo em face da amostra de países analisados, do tipo de medidas analisadas, das variáveis utilizadas e das técnicas de estimação.
Atualmente, porém, assistimos a uma grande reconfiguração geopolítica, intensificando a emergência de uma nova ordem mundial, com uma aceleração da divisão entre dois blocos políticos e económicos. De um lado as democracias (as economias liberais ocidentais) e do outro as autocracias (China, Rússia e outros regimes autocráticos). Esta nova ordem mundial trouxe consigo o aumento da beligerância e do protecionismo. Este último fenómeno tem sido também intensificado pela substituição da deslocalização de produções das empresas para países em desenvolvimento por produções robotizadas nos países desenvolvidos.
Ora, se o fenómeno inflacionista atual é uma herança das políticas monetárias não-convencionais - que expandiram enormemente o balanço dos bancos centrais, dado que, pelo menos no longo prazo, a inflação é um fenómeno monetário, no sentido que é fruto do excesso de moeda em circulação face à evolução da produção -, o aumento da beligerância e do protecionismo, decorrentes da nova ordem mundial, foram "a gota que fez transbordar o copo", por acelerarem a mudança de rumo da inflação em termos estruturais, sendo também de relevar os efeitos da política de "zero casos covid-19" da China, que tem afetado as cadeias de abastecimento globais, devendo desvanecer-se gradualmente.
Face ao aumento da taxa de inflação, ocorreu uma (nova) mudança no uso de instrumentos de política monetária, com aumentos rápidos e intensos das taxas de juro diretoras (política tradicional), além da referida retirada de medidas de política monetária não-convencionais.
Por exemplo, o BCE acabou com os atuais programas de compra de dívida (ainda que abrindo a possibilidade de retomar o que foi adotado durante a pandemia, caso esta volte a ressurgir). Porém, já criou um novo instrumento preventivo de anti-fragmentação na área euro (condicional, nomeadamente, ao seguimento das regras orçamentais europeias) para compra de ativos de países onde as condições de financiamento do Estado em mercado deixem de refletir os fundamentais económicos, procurando assim preservar o mecanismo de transmissão da política monetária (uma das justificações para o uso de medidas de política monetária não-convencionais) e evitar uma repetição da crise de dívidas soberanas, que levou Portugal a pedir ajuda externa em 2011. Note-se que a mera existência do instrumento já produz efeitos, pelo efeito dissuasor sobre os mercados, embora a falta de detalhes do mesmo possa prejudicar a sua credibilidade e levar os mercados a testá-lo.
Dito isto, e apesar do contexto de incerteza atual, é positivo o regresso a alguma normalidade da política monetária, com o retorno de taxas de juro positivas (o que confere incentivos mais adequados e saudáveis na relação entre risco, investimento e poupança), desde que não se tornem demasiado elevadas a médio e longo prazos, e balanços dos bancos centrais de dimensão mais normal com o fim do grosso dos programas de medidas de política monetária não-convencionais.
Por outro lado, será a partir daqui que veremos qual o papel de longo prazo das medidas de política monetária não-convencionais, além da função de preservação do mecanismo de transmissão de política monetária, que se mantém relevante, pelo menos na área do euro. Mais concretamente, numa futura crise não inflacionista, será que as medidas de política monetária não-convencionais continuarão a funcionar como o último recurso de política monetária, após esgotados os instrumentos tradicionais? Ou será que serão usadas antes de se esgotarem os instrumentos tradicionais, para não cairmos numa armadilha de liquidez e continuarmos a manter taxas de juro positivas?