Patrick de Pitta Simões, Jornal i online
Quantos se recordam que, há menos de uma década, o que se ouvia regularmente era sobre a necessidade de criarmos medidas e estratégias antifraude?
Todos sabemos que a sociedade se organiza invariavelmente pelas tendências ou costumes impressos pelos tempos em que vivemos, por vezes saudosistas, ainda que com um toque vintage, outras vezes futuristas ou visionários.
Considero que os conceitos de corrupção e fraude são, constantemente, utilizados em função de alterações estratégicas político-sociais que vão surgindo.
Quantos se recordam que, há menos de uma década, o que se ouvia regularmente era sobre a necessidade de criarmos medidas e estratégias antifraude? Por que razão se fala agora em medidas e estratégias anticorrupção, sem se mencionar, também, a antifraude? Ter-se-á erradicado as práticas fraudulentas? Não, seguramente que não, como todos bem sabemos (ou praticamente todos).
Nos dias de hoje, poucos são os que falam de fraude com a mesma frequência com que falam de corrupção, e quando o fazem é, sempre, numa ótica de que são sinónimos ou pelo menos induzem a pensar dessa forma, quem ainda os ouve. Não existe, pois, uma verdadeira dedicação em diferenciar tais conceitos que em si são distintos. Talvez nem saibam…
É verdade que ambas configuram condutas ilícitas, por corresponderem a práticas contrárias à lei, podendo mesmo ser consideradas infrações conexas, na medida em que têm uma relação ou uma correlação, uma com a outra e vice-versa.
A este propósito, pergunto se o Regime Geral da Prevenção da Corrupção (RGPC) estabelece verdadeiramente uma definição de corrupção e de infrações conexas?
O RGPC, no artigo que tem como epígrafe a definição de corrupção e infrações conexas trata de, sem as diferenciar entre si, definir a corrupção e as infrações conexas (passaram a ser o mesmo?), elencando um conjunto de crimes previstos no Código Penal, no Código de Justiça Militar, no Regime de Responsabilidade Penal por comportamentos Antidesportivos, na Responsabilidade Penal por crimes de Corrupção no Comércio Internacional e na Atividade Privada (sim, também existe corrupção no setor privado!), e nas Infrações Antieconómicas e contra a Saúde Pública.
Ora, o artigo falece em apresentar verdadeiramente uma definição destes tipo de crimes, ao invés, apresenta sim uma enunciação de crimes que se podem relacionar com a corrupção (serão, então, crimes conexos), ou uma simples remissão aos artigos destes diplomas que digam respeito aos crimes de corrupção, recebimento e oferta indevidos de vantagem, peculato, participação económica em negócio, concussão, abuso de poder, prevaricação, tráfico de influência, branqueamento ou fraude na obtenção ou desvio de subsídio, subvenção ou crédito. Note-se que a fraude não vem neste catálogo de crimes…
Procuremos então, sem muito juridiquês (jargão jurídico), até porque este não é um tema exclusivo de juristas, ver o que poderá ser corrupção e fraude, de modo a não tornar este texto estéril – como uns e outros que se leem por aí, sem um verdadeiro intuito de esclarecer (e, até, lançar o debate) a (na) opinião pública, mas antes para angariar “consumidores” da banha da cobra, através de “práticas comerciais desleais”.
A Associação Transparência e Integridade, citada pelo Governo como iremos ver, no seu glossário anticorrupção, de 28 de agosto de 2019, define fraude como o «ato de enganar alguém de forma intencional para ganhar uma vantagem injusta ou ilegal (seja ela financeira, política ou outra)» e, por sua vez, a corrupção como o «abuso do poder confiado para obtenção de benefícios privados».
Na minha ótica, entendo que fraude são todas as situações, de facto ou de direito, criadas com o intuito de evitar ou proporcionar a aplicabilidade de determinada consequência ou resultado.
Por sua vez, por corrupção entendo a conduta que constituiu uma utilização abusiva de determinado poder financeiro, estatuto político ou social, competência ou conhecimentos (a vulgarmente denominada “cunha”), lícito ou ilícito, suposto ou efetivo, que permita obter, para si ou para terceiro, um privilégio ou benefício.
O XXII Governo Constitucional, aprovou a Estratégia Nacional Anticorrupção 2020-2024 (contudo esta não pode ficar balizada somente para este período), através de Resolução de Conselho de Ministros inscrevendo como objetivos prioritários, o combate à corrupção e à fraude; não associando esta a questões exclusivamente fiscais, o que também muitos confundem com evasão fiscal ou "sonegação fiscal" (o ato de adulterar ou omitir o valor do tributo devido às Finanças Públicas).
No entanto, naquele diploma legal, foi trilhado que o caminho a percorrer seria a criação de um RGPC e que a implementação desse regime – as necessidades de recolha, tratamento e a difusão periódica de informação – convergiam no sentido da criação de um Mecanismo Nacional de Prevenção da Corrupção e da Criminalidade Conexa.
Ora, o então Mecanismo Nacional Anticorrupção (MENAC), criado ainda a título provisório, tem como missão a promoção da transparência e da integridade na ação pública e a garantia da efetividade de políticas de prevenção da corrupção e de infrações conexas. Como já vimos, na definição de corrupção e de infrações conexas do RGPC, não vem mencionada a fraude.
Mais, o Conselho de Ministros refere na sua Resolução que o problema é a corrupção, sem voltar a mencionar a fraude no sumário executivo do documento estratégico.
Realça que «[n]ão existe uma definição de corrupção comum a todos os países. No entanto, é consensual que numa conduta corruptiva se verifica o abuso de um poder [que por si só é um crime, ainda que residual, previsto no Código Penal] ou função públicos [não necessariamente se tivermos perante a corrupção exclusiva no setor privado] de forma a beneficiar um terceiro [e não o próprio?], contra o pagamento de uma quantia ou outro tipo de vantagem.»
Claro que quando lemos um diploma normativo é recomendável que não se leia apenas partes (dir-se-ia que as boas práticas recomendam a leitura até ao fim…), para percebermos que o Conselho de Ministros acrescenta «os crimes de corrupção apresentam-se, essencialmente, com duas configurações: a corrupção ativa e a corrupção passiva, conforme o agente esteja, respetivamente, a oferecer/prometer ou a solicitar/aceitar uma vantagem patrimonial ou não patrimonial indevida, distinguindo-se ainda, cada uma, conforme o ato solicitado ou a praticar seja ou não contrário aos deveres do cargo do funcionário corrompido.
Integram também o conceito criminal de corrupção, ainda que inexista abuso de um poder ou função públicos, os crimes de corrupção no comércio internacional e na atividade privada (…).
E remata dizendo que numa perspetiva mais social e menos jurídica do fenómeno, a organização não governamental Transparência Internacional define a corrupção como «o abuso de um poder confiado para ganhos privados» (verificamos que uma mudança do termo benefícios para ganhos).
Seja qual for a definição adotada, quer jurídica (prevista em legislação), quer utilizando expressões de linguagem corrente, na verdade falar de corrupção sem a diferenciar de outros crimes conexos não será, então, uma fraude intelectual?
Confesso que, sendo jurista, não me é fácil escrever um texto sem fazer referência a quaisquer números de leis ou artigos, creio, porém, ter conseguido contornar de forma honesta essa práxis.