José António Moreira, Jornal i online
Ainda a procissão não saiu do adro e já há evidência de atrasos. Se isso sempre aconteceu em anteriores aplicações dos fundos europeus, seria de esperar que fosse diferente desta vez? (…) O que interessará é aplicar o dinheiro, custe o que custar. Passar-se-á, rapidamente, de uma lógica de investimento para uma de gasto.
“Noite escura, debaixo de um candeeiro, um homem esquadrinhava meticulosamente o chão Iluminado. Outro se aproxima e pergunta se pode ajudar. A ajuda foi prontamente aceite, mas sem que daí resultasse efeito positivo para a empreitada de busca. Com o passar do tempo, o voluntário atreveu-se a perguntar: ‘Tem a certeza de que foi aqui que perdeu a sua moeda?’. A resposta chegou, envergonhada: ‘Eu perdi-a mais adiante, mas está muito escuro para a procurar lá.’”
Puro “nonsense”, dir-se-á. Com toda a razão. Porém, quantas vezes o comportamento do perdedor da moeda reflete, nos seus elementos essenciais, o comportamento de muitos de nós quando defrontamos um problema. Sabemos que temos de atuar, mas fazemo-lo do modo mais fácil, mesmo se, à partida, a possibilidade de resolver aquele seja nula. Gastam-se recursos, paciência, hipotecam-se ajudas e, no final, o problema continua lá, possivelmente agravado pelo passar do tempo.
Se este tipo de atuação é grave quando se trata de problemas individuais e o esforço despendido é do próprio, as consequências são dramáticas quando os problemas são coletivos e os recursos investidos na busca de uma potencial solução são de todos e têm um elevado custo de oportunidade.
O anémico crescimento da economia portuguesa ao longo das duas últimas décadas é um problema muito sério. Porque condiciona negativamente o nível de vida do país; hipoteca recursos preciosos que vão procurar noutras paragens a remuneração que não encontram dentro de portas; favorece o florescer de tensões sociais e a incapacidade para atender de modo minimamente aceitável aos mais necessitados.
Não é por falta de estudos que os recursos são aplicados na “zona iluminada”. O ineficiente funcionamento da justiça, a sufocante carga fiscal, a burocracia da Administração Pública, a incapacidade nacional para gizar compromissos políticos sobre objetivos nacionais de médio e longo prazo, a falta de planeamento no investimento e de controlo dos resultados deste … são algumas das “zonas escuras” mapeadas, onde os problemas complicados efetivamente residem.
Porém, é difícil atuar nessas zonas e, como tal, buscam-se, a todo o momento, as referidas “zonas iluminadas”, onde se lançam recursos sem conta nem medida, repetindo procedimentos malsucedidos anteriormente, enquanto se espera que os resultados sejam agora diferentes.
O PRR – Plano de Recuperação e Resiliência é a última dessas quimeras. Uma versão moderna da lenda de D. Sebastião, que numa manhã de neblina vai catapultar o país do fundo da tabela para o estrelato do crescimento. Foi e continua a ser proposto como “a” solução. Uma ilusão.
Deixe-se de lado a discussão sobre se os eixos desse plano correspondem aos que os problemas enfrentados pelo país efetivamente exigiriam; ou do seu modesto montante, relativamente aos fundos europeus recebidos em pretéritos anos; ou da reduzida parte atribuída ao setor empresarial privado. Foque-se a questão na respetiva implementação e consequências daí resultantes.
Ainda a procissão não saiu do adro e já há evidência de atrasos. Se isso sempre aconteceu em anteriores aplicações dos fundos europeus, seria de esperar que fosse diferente desta vez?
Desde a última vez, corrigiram-se as lacunas existentes ao nível da implementação e controlo? O governo do país vai forçar o ritmo da implementação? Certamente que vai. Responderá à pressão dos prazos. Aliviar-se-ão cuidados para limitar a corrupção na utilização desses fundos, far-se-á vista grossa sobre o real interesse de determinados investimentos. O que interessará é aplicar o dinheiro, custe o que custar. Passar-se-á, rapidamente, de uma lógica de investimento para uma de gasto.
No final, o país continuará a sofrer dos mesmos problemas, apesar de um esporádico aumento da taxa de crescimento económico no período em que se gastarem os fundos. Ficará mais pobre, porque terá gastado recursos sem ter resolvido esses problemas; porque voltará a não perceber onde falhou, para evitar voltar a cair no futuro; porque enquanto a ilusão persiste, a resolução dos reais problemas fica congelada; porque os vendedores de ilusões voltarão a não ser responsabilizados, qualquer que seja o resultado final.
Porém, tal como nos sonhos, mesmo nos mais belos, o acordar traz sempre o confronto com a realidade. O país partirá em busca de uma nova quimera. O pacote de fundos europeus que se seguirá é que será “a” solução.