António Maia, Jornal i online

Ninguém em seu perfeito juízo conseguirá encontrar alguma circunstância que, de modo racional, permita explicar, dar sentido e justificar uma guerra.

Em 1985, quando se vivia o auge do clima e da tensão da guerra fria entre os blocos de leste e do ocidente, liderados pela então União Soviética (atual Rússia) e pelos Estados Unidos, Sting lançava o tema russians (russos) para relembrar, com a força e a capacidade de envolvimento próprias da música, que acima de tudo e independente dos contextos e circunstâncias políticas, sociais, culturais e económicas em que nos encontremos, somos seres humanos. Terminava o poema – que rapidamente se tornou icónico por todo o mundo, e que por estes dias tem sido retomado – com a esperança de que os russos também fossem capazes de amar as suas crianças.

Claro que os russos amavam e amam as suas crianças, como sucede com os ucranianos e com todos os povos do mundo!

E esta é precisamente a ideia que quero explorar aqui, num momento em que o mundo assiste, chocado, a cada dia que passa, a novas e cada vez mais impactantes imagens dos horrores da bárbara guerra da invasão das tropas russas sobre a Ucrânia e da tentativa desesperada de um povo inteiro a defender-se e a tentar escapar a esta inenarrável circunstância para que foi empurrado.

As crianças de que falava Sting terão hoje pelo menos 32 anos de vida. E algumas delas estão lá na guerra. Quer as crianças russas, quer as ucranianas. E ao lado dessas estão outras, que são ainda mais crianças. A avaliar pelo que as notícias nos têm trazido, a maioria dos soldados que se defrontam nesta estúpida guerra (a guerra é e sempre será uma estupidez! creio que ninguém em seu perfeito juízo conseguirá encontrar alguma circunstância que, de modo racional, permita explicar, dar sentido e justificar uma guerra) são bem mais novos. Ainda nem existiam quando Sting as cantou e à relação natural de amor que está sempre associada à existência das crianças.

Ao que parece, muitos dos soldados desta guerra – pelo menos do lado dos russos – não serão muito mais do que crianças, como indicam os relatos da presença de recrutas, feitos soldados à pressa, ainda mal saídos da família. Ainda sem duas décadas de vida, e repentinamente atirados para ali, para o inferno das atrocidades, a serem vítimas de ordens de chefes que provavelmente nunca viram, mas que respeitam cegamente, por convicção induzida ou por medo, a dispararem indiscriminadamente sobre as crianças ucranianas que estão do outro lado das barricadas, e que para ali foram atiradas pela convicção da necessidade de defenderem o seu país e o direito ao seu povo a decidir sobre os seus destinos.

Noutras circunstâncias todas aquelas crianças estariam muito provavelmente a conviver de modo fraterno e amigo umas com as outras. Desde logo por pertencerem a povos vizinhos e por partilharem alguns traços históricos e culturais, mas sobretudo por serem humanos e pela essência do que é ser humano.

Há uns bons anos, por razões profissionais, participei numa reunião internacional com colegas de diversos países europeus. Essa reunião decorreu num país do agora designado ex bloco de leste, mais concretamente na Eslováquia, e, num momento de pausa dos trabalhos, a conversa derivou precisamente para o que teria sido o contexto de vida das sociedades, das pessoas concretas, de carne e osso, nos tempos da guerra fria em cada um dos blocos, e acabámos por verificar, até pelos testemunhos dos presentes – e havia colegas com vivências de ambos os lados do muro -, que as expectativas de vida das pessoas e das famílias eram e são, no essencial, as mesmas. Ter saúde e estabilidade, económica e emocional, segurança e perspetivas de prosperidade. Sim, o que mais se pode ambicionar na vida?

A dada altura e na sequência do decurso da conversa, um dos colegas, inglês, partilhou sensibilizado a seguinte circunstância da sua vida:

Anos antes, quando fazia parte do exército inglês, viu-se diretamente envolvido na guerra das Malvinas, que, entre abril e junho de 1982, opôs as tropas argentinas, que ocuparam aquele território insular do hemisfério sul, junto à Argentina, e as tropas inglesas, que defenderam o território dada a soberania da coroa britânica sobre as ilhas. Recordava o colega que nessa campanha tomou parte em situações em que esteve em confronto direto com as tropas argentinas.

Anos mais tarde, por circunstâncias próprias do acaso da vida, conheceu em Inglaterra um grupo de argentinos muito simpáticos com os quais veio a travar amizade. Num dos dias, quando se encontravam num bar a tomar uma bebida depois de jantar, a conversa acabou por derivar para o referido conflito e rapidamente perceberam que tinham estado lá na mesma ocasião e a integrar forças militares que estiveram no terreno a lutar frente a frente. Dizia o colega: quando chegámos a essa conclusão ficámos a entreolhar-nos em silêncio. Tudo, disse, de repente pareceu estranho. Perceberam que naquela circunstância passada, que na realidade não dependeu da vontade de nenhum deles, estiveram “literalmente” aos tiros um ao outro, e que por acaso, sorte, ou simplesmente por má pontaria, nenhum dos dois sofreu qualquer incidente próprio da guerra. E que agora, na nova circunstância, porventura também por acaso, ali estavam frente a frente, a confraternizar, a descobrir que eram aquilo que sempre foram. Pessoas de carne e osso, com fragilidades e necessidades próprias das Pessoas. Pessoas capazes de criar e aprofundar relações próprias dos seres humanos com outras Pessoas.