Patrick Simões, Jornal i online

Não é apenas agora que se deve instituir garantias aos trabalhadores denunciantes, reconhecendo-se o whistleblowing como um mecanismo que a todos interessa

A três meses da entrada em vigor do Regime Geral de Proteção de Denunciantes de Infrações (RGPDI), aprovado pela Lei 93/2021, de 20 de dezembro, que transpõe a Diretiva (UE) 2019/1937 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de outubro de 2019, relativa à proteção das pessoas que denunciam violações do direito da União (Diretiva Whistleblowers), há ainda muitas pessoas (singulares) e entidades públicas e privadas que desconhecem a obrigatoriedade de se salvaguardar garantias aos trabalhadores denunciantes.

Provavelmente menos serão aqueles que saberão que desde o ano de 2008 que está em vigor no nosso ordenamento jurídico uma lei que, pelo meio de alterações a outros diplomas legais, portanto, facilmente despercebida, estabelece essas garantias aos denunciantes. Refiro-me à Lei n.º 19/2008, de 21 de abril, alterada pela Lei n.º 30/2015, de 22 de abril, e pela Declaração de Retificação n.º 22/2015, de 25 de maio.

A primeira versão deste diploma (em 2008) era apenas aplicável à Administração Pública, no entanto, com a segunda alteração (em 2015) passou a aplicar-se, também, ao setor privado.

O legislador nacional aprovou medidas de combate à corrupção prevendo, especificamente, que os trabalhadores da Administração Pública e de empresas do setor empresarial do Estado, assim como os trabalhadores do setor privado, que denunciem o cometimento de infrações de que tiverem conhecimento no exercício das suas funções ou por causa delas, não podem, de forma alguma, ser prejudicados, incluindo ser sujeitos a transferência não voluntária ou o despedimento.

O artigo 4.º da lei, o único que nos importa destacar, diz-nos, ainda, que se presume abusiva, até prova em contrário, a aplicação de sanção disciplinar aos trabalhadores denunciantes, quando esta tenha lugar até um ano após a respetiva denúncia (esta presunção legal foi estendida, pelo RGPDI, para 2 anos, bem como alargado o leque de situações em que se considera estarmos perante um ato de retaliação contra o denunciante – cf. artigo 21.º, n.º 6 e 7). Por força desta Lei n.º 19/2008, os trabalhadores denunciantes têm direito: ao anonimato, exceto para os investigadores, até à dedução de acusação; e à transferência (de local de trabalho) a seu pedido, sem faculdade de recusa, após dedução de acusação.

Em 2015, o legislador acrescentou, ainda, que estes trabalhadores beneficiam, igualmente, e com as devidas adaptações, das medidas previstas para a proteção de testemunhas em processo penal (Lei n.º 93/99, de 14 de julho, alterada pelas Leis n.os 29/2008, de 4 de julho, e 42/2010, de 3 de setembro).

Como se vê, não é apenas agora que se deve instituir garantias aos trabalhadores denunciantes!

As observações que faço são gerais e abstratas (como o é a Lei n.º 19/2008) e não relativas às melhores práticas de conformidade legal, transparência e integridade (Compliance) de auditores (a título de exemplo as previstas pelas normas internacionais, atuais ISO 37001:2016, 37002:2021 e 37301:2021); às recomendações, nomeadamente da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários; à Deliberação n.º 765/2009, da Comissão Nacional de Proteção de Dados (Linhas de Ética, aplicáveis aos domínios da contabilidade, dos controlos contabilísticos internos, da auditoria, da luta contra a corrupção e do crime bancário e financeiro); de regulamentos internos (normas de autorregulação – códigos de ética e de conduta, manuais de boas práticas ou normas de controlo interno); nem tão-pouco às convenções europeias existentes sobre a matéria (tais como a Convenção do Conselho da Europa sobre a Manipulação de Competições Desportivas) ou internacionais (designadamente a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção e o seu artigo relativo à proteção das pessoas que dão informações) que Portugal tenha ratificado ou seja parte signatária.

De igual modo, não poderei aqui, face à extensão do texto, desenvolver outras previsões legais específicas como, por exemplo, a Lei n.º 83/2017, de 18 de agosto, que estabelece medidas de combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo; ou ao Regulamento (UE) n.º 376/2014 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de abril de 2014, relativo à comunicação, à análise e ao seguimento de ocorrências na aviação civil; ou, ainda, à competência expressa, sem margem para dúvidas, de quem assegura a implementação e manutenção (conselho de administração), e de quem tem a responsabilidade pela sua avaliação (o auditor interno), de um sistema de controlo interno e de comunicação de irregularidades, previsto pelos Estatutos dos Hospitais, Centros Hospitalares e Institutos Portugueses de Oncologia, E. P. E. (anexo II, do Decreto-Lei n.º 18/2017, de 10 de fevereiro, que regula o Regime Jurídico e os Estatutos aplicáveis às Unidades de Saúde do Serviço Nacional de Saúde com a natureza de Entidades Públicas Empresariais, bem como, as integradas no Setor Público Administrativo).

Não obstante esta multiplicidade de normas ordinárias sobre a matéria, daí surgir a necessidade de se estabelecerem normas mínimas comuns, o que foi agora concretizado através da Diretiva Whistleblowers (ou Whistleblowing); a proteção do denunciante em Portugal tem suporte e dignidade constitucional se entendermos que o que está em causa é o direito de informar, de se informar e de ser informado, sem qualquer discriminação ou impedimento (artigo 37.º da Constituição da República Portuguesa - CRP); e ainda a garantia de proibição de despedimentos sem justa causa (artigo 53.º da CRP), proibição prevista também no Código do Trabalho (artigo 338.º) e na Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (artigo 288.º) – não havendo a prática de assédio moral (ou bullying), ou outra conduta criminalmente sancionável, por parte da(s) chefia(s), em última instância, o despedimento injustificado será a maior retaliação.

Tenha-se presente que qualquer pessoa que tenha uma relação em contexto profissional, com qualquer uma das nossas organizações, pode ser um potencial denunciante, isto é, de acordo com o RGPDI, stricto sensu, a «pessoa singular que denuncie ou divulgue publicamente uma infração, com fundamento em informações obtidas no âmbito da sua atividade profissional, independentemente da natureza desta e do setor em que é exercida, é considerada denunciante». Seja esta pessoa um trabalhador (do setor privado, social ou público); prestador de serviços, contratante, subcontratante e fornecedor, bem como, qualquer pessoa que atue sob a sua supervisão e direção; titular de participações sociais, pertencente a órgãos de administração ou de gestão ou a órgãos fiscais ou de supervisão de pessoas coletivas, incluindo membro não executivo; voluntário e estagiário, remunerado ou não remunerado; tudo isto sem obstar a circunstância de a denúncia ou de a divulgação pública, protegida – aquela que respeita a precedência entre os meios de denúncia interna e externa previsto pelo RGPDI –, de uma infração, ter por fundamento informações obtidas numa relação profissional entretanto cessada e, bem assim, durante o processo de recrutamento ou noutra fase de negociação pré-contratual de uma relação profissional, constituída ou não constituída.

Para beneficiar das condições de proteção previstas no RGPDI, entre as quais a confidencialidade, a proibição de retaliação, medidas de apoio, a tutela jurisdicional efetiva e a indisponibilidade dos direitos, o denunciante tem de agir de boa-fé, com fundamento sério para crer que as informações são, no momento da denúncia ou da divulgação pública (protegida), verdadeiras. Nos mesmos termos, é protegido o denunciante anónimo que seja posteriormente identificado e o denunciante que ignore, sem culpa, a precedência entre os meios de denúncia interna (dentro das organizações) e externa (para autoridades competentes).

A proteção que o RGPDI confere ao denunciante é, ainda, extensível, com as devidas adaptações, à pessoa singular que auxilie o denunciante no procedimento de denúncia e cujo auxílio deva ser confidencial, incluindo representantes sindicais ou representantes dos trabalhadores (eventualmente a dificuldade prática, de perceber os limites da intervenção dos denominados facilitadores da denúncia, poderá vir a qualificá-los, em função do seu grau de conhecimento e envolvimento na denúncia, como denunciantes lato sensu); terceiro que esteja ligado ao denunciante, designadamente colega de trabalho ou familiar e, nessa medida, possa ser alvo de retaliação num contexto profissional; as pessoas coletivas ou entidades equiparadas que sejam detidas ou controladas pelo denunciante, para as quais o denunciante trabalhe ou com as quais esteja de alguma forma ligado num contexto profissional.

Por seu turno, denunciado é a pessoa singular ou coletiva referida na denúncia ou na divulgação pública como autora da violação ou que a esta seja associada, ou seja, toda e qualquer pessoa visada na denúncia.

Não pretendendo com esta exposição ser alarmista, nem existirá razão para tal se formos profissionais zelosos e pessoas íntegras, o whistleblowing a todos interessa na medida em que podemos ser denunciados (visados) numa denúncia, sermos interpelados pelo responsável pelo cumprimento normativo (Compliance Officer), responsável que garante e controla os canais denúncia, para colaborarmos no apuramento da verdade (testemunharmos), ou para dar parecer técnico sobre o enquadramento ou qualificação dos elementos constantes na denúncia, ou, ainda, impelidos pela necessidade, motivada por uma consciência ética, de denunciar algum facto ou suspeita de prática de uma infração (desde a mera irregularidade até à prática de um crime).

Simultaneamente, poderão ocorrer situações que, objetiva e independentemente de juízos de valor introspetivos, nos forcem a denunciar. Alguns dirão “estar no sítio errado, à hora errada” e ficar a saber da prática (incluindo a tentativa de ocultação ou a perpetração que se possa, razoavelmente, prever) de uma infração, outros entenderão que se trata de “estar no sítio certo, à hora certa”, mas que nos obriga a denunciar sob pena de seremos considerados cúmplices ou, no mínimo, complacentes com a conduta errada, repreensível, inconforme, ilegal ou ilícita.

A subjetividade é inevitável num tema em que a boa vontade, iniciativa livre e ação (cidadania) altruísta, deve imperar, não sendo, portanto, obrigatória a denúncia. Todavia, não deixa de gerar emoções antagónicas e crispadas (amores ou ódios) entre as pessoas defensoras e aquelas que repudiam este sistema de denúncias e de proteção de denunciantes (whistleblowing), independentemente de algumas destas concordarem com a, estrutural, mudança jurídico-cultural do sentido e alcance do vocábulo: denunciante.

Atentos à dinâmica profissional e académica, em geral, e à proteção do denunciante e à obrigatoriedade de se estabelecer canais de denúncia em Portugal, em contexto profissional, impulsionada com a breve entrada em vigor do RGPDI, a 18 de junho de 2022, que prevê contraordenações que podem ascender até aos 250.000€, o Centro de Investigação e Desenvolvimento sobre Direito e Sociedade (CEDIS), da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa – NOVA School of Law – e o Observatório de Economia e Gestão de Fraude (OBEGEF), da Faculdade de Economia da Universidade do Porto, organizam mais uma iniciativa de acesso livre, à semelhança do que ocorreu o ano passado (disponível online), sobre o whistleblowing em Portugal, aos dias de hoje.

Neste evento pensar-se-á sobre o que já existe, tem sido feito e deverá (legalmente)/poderá (perspetivas futuras) ser realizado quanto às melhores práticas, direitos e deveres subjacentes à efetiva proteção de denunciantes.

A não perder, amanhã dia 17/03/22 pelas 18H00 (https://videoconf-colibri.zoom.us/j/88038988175?pwd=NVdiVmZibDN6eWtrdDZROUNIOXJVdz09)